Turismo exclui moradores da praia em rota de Réveillon de luxo em Milagres
À esquerda da rodovia AL-101, uma estreita rua sem calçamento dá acesso à favela Cabanas do Porto, em São Miguel dos Milagres, litoral norte de Alagoas. Sem saneamento e com 35 famílias em moradias precárias, a área está a 1 km da praia que hoje se tornou um dos destinos mais caros e badalados para virada de ano no Nordeste — o ex-presidente Jair Bolsonaro vai passar o fim de ano lá.
É o "Réveillon dos Milagres", que engloba mais duas cidades da rota ecológica: Passo do Camaragibe e Porto de Pedras.
Do lado direito da rodovia, está o mar e suas pousadas, condomínios de luxo e terrenos com placas que repetem uma mesma ideia: "propriedade privada", "proibido acesso".
Antônio Amaro Nascimento Filho, 51, mora há 14 anos em São Miguel dos Milagres e terá de deixar sua casa de chão de terra em 15 dias. "O dono pediu porque vai colocar piso e alugar ela mais caro".
Na casa vivem 11 pessoas: ele, a esposa, oito filhos e um neto. A família paga R$ 300 ao mês e não sabe para onde vai. "Eu cheguei a fazer casa duas vezes, mas minha área dada foi uma nascente, e ela desabou", lamenta.
Da festa de Réveillon, diz, a comunidade só vai ouvir os fogos: "Onde moramos mal dá para ver".
O turismo de massa nos últimos anos mudou a dinâmica da cidade. Ele é positivo por aumentar a receita do município e gerar empregos.
Entretanto, gerou problemas colaterais, como a "expulsão" de moradores das melhores áreas e o aumento do custo de vida. "A gente está vivendo nessa situação precária por causa do turismo, que ficou com todas as áreas boas", diz Antônio.
Como foi a ocupação
Em 2009, o grupo de moradores ocupou um terreno baldio à margem da AL-101 (lado da praia). Após nove anos, o proprietário entrou com ação de despejo para começar a vender lotes a investidores. Os moradores tiveram de sair — inicialmente foram levados a uma quadra de esportes cedida pela prefeitura, onde ficaram por um ano e três meses.
Em 2019, a Prefeitura de São Miguel dos Milagres cedeu uma área, sem estrutura, para que erguessem casas e barracos.
A gente vive na lama, cheio de mosquitos. O calor dentro de casa é insuportável porque o teto tem lona. Quando chove, piora porque entra água.
Grasiely Batista, 21, que ergueu um barraco no local
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Quero receberEdnalva Maria do Nascimento, 67, é aposentada e diz que acabou sendo "empurrada" de áreas mais bem localizadas para a comunidade. Ela conta que mora com a filha e o genro, ambos com 16 anos, que não estudam mais para poderem trabalhar.
O dinheiro do turismo deveria ajudar a gente muito mais. Meu sonho na vida é ter uma casa própria. Se tivesse, ia embora hoje mesmo. Espero que o prefeito cumpra a promessa e um dia eu tenha.
Ednalva Maria do Nascimento, aposentada
Outro lado: em nota, a Prefeitura de São Miguel dos Milagres afirma que vem prestando "toda a assistência necessária" às famílias em estado de vulnerabilidade nessas localidades e que faltou "planejamento e cuidado de gestões passadas", o que gerou "aumento de desigualdade em nosso município".
Ainda segundo a prefeitura, "lotearam áreas verdes, compraram terrenos inapropriados para a construção de casas e não ofereceram a mínima condição de moradia para essas pessoas".
Informa que está construindo 10 casas que irão atender diretamente famílias em áreas de risco. "No último dia 28 de dezembro de 2023, foi publicado no diário oficial o aviso de licitação para a construção de mais 15 casas que também atenderão famílias em estado de vulnerabilidade."
Cidade bombou recentemente
O sucesso do Réveillon dos Milagres é recente: em 2013, um grupo de amigos passou a virada do ano em São Miguel e viu potencial para atrair mais pessoas. Surgia então uma marca: "I believe in Miracles" (eu acredito em Milagres), presente em todos os eventos.
O Réveillon não se restringe a um local ou uma festa específicos; é um conceito, como dizem, que vai além dos dias da virada de ano. Tem uma semana cheia (neste ano, de 26 dezembro a 2 de janeiro), em que a rede hoteleira e casas de veraneio ficam lotadas. Diversas festas são realizadas, com ingressos sempre caros.
Pescadores foram para o turismo
Ao longo dos anos, quem vivia da pesca acabou migrando para o turismo. O pioneiro nessa mudança foi Israel Silva Santos, 47, que em 1999 percebeu que o turismo ali começava a dar sinais de vida.
Eu pescava, mas me falaram que o turismo ia crescer e resolvi sair. Naquele ano só tinham três jangadeiros, e eu comecei a fazer passeios aqui na praia de Porto da Rua. Com o turismo o dinheiro é mais garantido.
Hoje, segundo a Associação de Jangadeiros, são 85 atuando em São Miguel dos Milagres.
José Vanderley, 60, era só pescador até 2018, quando também resolveu adaptar sua jangada para oferecer passeios. Antigo na região, ele diz que as coisas mudaram radicalmente na pacata São Miguel.
Antes era tudo muito barato. O custo de vida aumentou demais, e não foi só casa: foi o mercadinho, a conveniência, a loja de roupa... Os pescadores que moravam aqui [beira-mar], todos foram tirados ou saíram para dar os melhores locais para os turistas. Com o preço do metro quadrado aqui da orla, é impossível hoje.
Explosão de preços das casas
Nas cidades da rota dos Milagres, há dezenas de terrenos sem construção próximos ao mar. Eles foram comprados por valores baixos, ao longo dos anos, e isso gerou uma especulação imobiliária.
Hoje é fácil achar terrenos com preço na casa dos milhões. Ontem, a coluna encontrou um anúncio de terreno por R$ 16,5 milhões em Porto de Pedras, que está sendo vendido por uma pessoa cujo DDD é de São Paulo.
O professor Lindemberg Medeiros de Araújo, do Instituto de Geografia, Desenvolvimento e Meio Ambiente da UFAL (Universidade Federal de Alagoas), estuda as mudanças na região e diz que as três cidades da rota dos milagres sofrem problemas que começaram a surgir no final da década de 1990.
É quando a área começa a ser visitada por estrangeiros, que viram potencial para um turismo que valoriza a paisagem natural, o patrimônio cultural local. Começaram a comprar casas, e aí vieram ofertas de emprego e alguns cuidados com meio ambiente. Era o conceito das pousadas de charme.
Lindemberg Medeiros de Araújo, professor da UFAL
A partir dali, com a divulgação turística, o destino foi crescendo. "Os terrenos que eram muito baratos começam a aumentar de preço. Começa o processo de gentrificação."
Em uma das pesquisas, o professor Araújo diagnosticou que muitas das moradias eram cedidas à população — pelo Censo de 2010, 25% das casas de Porto de Pedras eram habitadas nessa condição.
Os terrenos não eram valorizados. Uma pessoa pedia para morar na casa, e um dono de terreno cedia. Com a valorização, a especulação imobiliária fez com que tudo mudasse. Hoje é difícil achar casa para aluguel por 12 meses. O padrão é aluguel para temporada por meio de plataformas.
Já vimos caso de uma pessoa alugar casa só para o período festivo por R$ 25 mil.
Lindemberg Medeiros de Araújo, professor da UFAL
Ele explica que o turismo mais rústico seguiu até metade da década passada, quando Milagres começou a ganhar fama pelo Réveillon, levando a uma nova corrida por áreas.
A cidade se tornou visitada o ano todo e virou um point de casamentos de pessoas ricas e famosas, como o do influenciador Whindersson Nunes com a cantora Luiza Sonza, em 2018.
Não há um processo de planejamento que compatibilize a expansão do turismo com a proteção das populações tradicionais que estavam lá antes.
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