Carlos Madeiro

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Reportagem

Seca e cheia: o que explica a Amazônia ter extremos do clima ao mesmo tempo

Separados "apenas" pelo estado do Amazonas, Acre e Roraima enfrentam neste momento problemas opostos de extremos climáticos, que castigam com seca e cheias ao mesmo tempo áreas de um mesmo bioma, a Amazônia.

O Acre enfrenta uma das maiores cheias de rios de sua história, com mais de 100 mil pessoas atingidas e 12 cidades em situação crítica.

Já Roraima lida com uma situação de emergência declarada em nove cidades, no último dia 26, por causa da falta de chuvas, que contribuiu para o estado ter recorde de queimadas para um mês de fevereiro.

Dias sem chuva no país
Dias sem chuva no país Imagem: Lapis/Ufal

Precisamos falar sobre o El Niño

Um ponto importante de se entender é que o país está sob efeito do El Niño, o fenômeno de aquecimento das águas do oceano Pacífico equatorial, que causa redução de chuvas nas regiões Norte e Nordeste.

Por causa dele, estados como o Amazonas enfrentaram severa seca, com o nível dos rios atingindo patamares nunca vistos.

Mas se o El Niño reduz as chuvas, por que o Acre viu os seus rios subirem a níveis tão altos, causando, em algumas cidades, a maior cheia já vivida na história?

O meteorologista Marcelo Seluchi, coordenador-geral de Operações e Modelagem do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), afirma que o evento no Acre foi inesperado inicialmente, justamente por ser em um período de El Niño, que causa seca na Amazônia.

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Ele explica que chuvas fortes foram uma "coisa pontual" de uma região específica da Amazônia.

Foi mais uma alteração da pressão atmosférica e dos ventos nos altos níveis, que tiveram uma influência do que chamamos onda de Madden-Julian. Essa área de baixa pressão modificou de alguma forma a circulação dos ventos da atmosfera e favoreceu a ocorrência de chuvas.
Marcelo Seluchi, meteorologista

Cidade de Brasiléia alagada
Cidade de Brasiléia alagada Imagem: Prefeitura de Brasiléia

A onda Madden-Julian, diz, atua como se fosse um oceano de ar e de ondas na atmosfera. "É um tipo de onda que tem uma frequência de mais ou menos 30, 60 dias; ela causa mais chuva e menos chuva, com uma certa alternância: quando a pressão fica mais alta, chove menos. Quando baixa, chove mais.

Esse tipo de onda nem sempre está presente em um ambiente nem atua sempre com a mesma intensidade.

Mas nesse caso, ela se apresentou com forte intensidade e provocou uma queda da pressão atmosférica em uma região amazônica do Acre. Mas a maior parte das chuvas foi no leste do Peru e na parte norte da Bolívia.
Marcelo Seluchi

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Essas chuvas ocorreram especialmente na bacia do rio Madre de Deus, que corta Peru e Bolívia e é afluente dos rios Madeira e Acre.

Outro ponto que ele ressalta é que esse tipo de chuva não foi antecipado pelos meteorologistas por ocorrer especialmente na região dos Andes peruanos, onde não há muitas observações da rede de meteorologia brasileira.

Foi algo de curto prazo. Não foi simples de identificar porque não houve nenhum tipo de sistema meteorológico de visualização, como uma frente fria. Ela só foi percebida poucos dias antes.
Marcelo Seluchi

Acre ainda terá seca

Ana Paula Cunha, pesquisadora de secas do Cemaden, explica que apesar do El Niño ser um fenômeno conhecido, ele sempre causa impactos diferentes no padrão de chuvas das regiões.

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Na avaliação das áreas afetadas pela seca, observamos que os impactos são sempre muito heterogêneos nas regiões. Cada El Niño traz configurações diferentes e não esperadas. Vemos isso dentro da própria Amazônia, que hoje está uma 'colcha de retalhos' em termos de distribuição de chuvas.
Ana Paula Cunha

No caso do El Niño atual, a redução de chuvas ocorreu mais significativamente na região Norte, e não tanto no Nordeste, onde também causa influência climática.

No caso da Amazônia, o que chama a atenção são as mudanças de extremos em tempo muito curto. O Acre estava enfrentando uma seca quando vieram essas cheias.
Ana Paula Cunha

Operação de entrega de alimentos no Amazonas durante seca histórica, em setembro de 2023
Operação de entrega de alimentos no Amazonas durante seca histórica, em setembro de 2023 Imagem: Divulgação / Seduc AM

A pesquisadora diz que, apesar de a Amazônia viver extremos opostos, não se pode atribuir esses fenômenos concomitantes às mudanças climáticas —"ao menos tão diretamente e sem mais análises."

O que a gente tem percebido é que as secas estão mais recorrentes desde o final da década de 90. Vemos também o oceano Atlântico em uma crescente de temperatura. Isso, sim, é um efeito das mudanças climáticas e também influencia áreas da Amazônia.
Ana Paula Cunha

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Um fato curioso, diz, é que apesar de enfrentar nesse momento um cenário de tragédia causada pelas cheias, o Acre deve continuar enfrentando redução média nas chuvas e seca nos próximos meses.

A tendência é que agora em março volte a ser um período seco, inclusive no Acre. Aí sim, estamos falando de evidências de eventos extremos mais recorrentes.
Ana Paula Cunha

Previsão do Cemaden é de seca severa em março no Acre
Previsão do Cemaden é de seca severa em março no Acre Imagem: Cemaden

O meteorologista e coordenador do Lapis (Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites) da Ufal (Universidade Federal de Alagoas), Humberto Barbosa, afirma que os efeitos da seca podem se estender por mais alguns meses.

Embora o Pacífico equatorial fique neutro [sem El Niño e sem La Niña] a partir de abril, a resposta da atmosfera ainda deve se prolongar por alguns meses. É o que estamos chamando de 'El Niño atmosférico', que deve atuar na temperatura global e na precipitação até a primavera [que começa em setembro].
Humberto Barbosa

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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