Carlos Madeiro

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Reportagem

Maior projeto de energia eólica do país ameaça sítios arqueológicos no NE

O projeto de implantação de um complexo eólico com 372 torres para geração de energia pelos ventos na região de Seridó, entre os estados de Rio Grande do Norte e Paraíba, está sendo questionado por arqueólogos e preocupa o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que cobra garantias para licenciar o empreendimento.

O complexo Eólico Pedra Lavrada, do grupo Casa dos Ventos, tem registro desde 2019, mas ainda está em fase de análise e licenciamento prévio.

A área do empreendimento previsto é de 1.981 hectares (quase 2.000 campos de futebol) em oito municípios dos dois estados nordestinos. Se fosse inaugurado hoje, seria o maior complexo do país em número de torres —o maior hoje é o Lagoa dos Ventos, no Piauí, com 302.

Complexo Lagoa dos Ventos em Lagoa do Barro (PI)
Complexo Lagoa dos Ventos em Lagoa do Barro (PI) Imagem: Divulgação

O problema é que a área concentra uma série de patrimônios arqueológicos ricos do país e que ainda não são protegidos legalmente, com a criação de um parque nacional ou de uma unidade de conservação, por exemplo.

Para especialistas, a implantação de um complexo dessa magnitude é vista com um risco para os sítios e tradições históricas, mesmo com medidas preventivas e paliativas.

O grupo responsável pelo investimento diz que há alteração no projeto inicial e que fará o complexo ouvindo a comunidade e respeitando rigorosamente a lei (leia mais abaixo).

Iphan questiona

Uma nota técnica de fevereiro de 2023 produzida pela Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan alerta que os impactos do empreendimento "são incomensuráveis" e cita que "a instalação do projeto terá consequências devastadoras para o conhecimento da história, da cultura e da diversidade étnica dessa parte do Brasil que precisa ser melhor estudada."

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Verifica-se, portanto, uma preocupação relevante acerca da viabilidade de instalação do empreendimento na região do Seridó, visto que há um rico patrimônio cultural nesta região e, portanto, na área de abrangência do empreendimento.
Iphan, em nota técnica

A preocupação não é só sobre o empreendimentos, mas também em relação às obras para a construção do parque. Em março de 2023, o Iphan pediu à Casa dos Ventos para detalhar o "alcance dos impactos, especialmente quanto aos efeitos do uso de explosivos, principalmente em cavidades e demais suportes rochosos próximos."

O Iphan também pediu esclarecimentos sobre o "risco de soterramento de bens arqueológicos situados nos cursos d'água, devido ao sedimento revolvido nas partes mais altas do relevo e à supressão vegetal."

Procurado pela coluna, o Iphan informou nesta sexta-feira (15) que emitiu, em julho de 2023, um termo de referência solicitando um relatório de avaliação de impacto aos bens registrados e de potencial de impacto ao patrimônio arqueológico.

Esses estudos devem fornecer os subsídios para que o Iphan se manifeste sobre os impactos relativos ao empreendimento. Até o presente momento, o empreendedor não encaminhou os relatórios solicitados.

Geossítio Cânions dos Apertados, em Currais Novos
Geossítio Cânions dos Apertados, em Currais Novos Imagem: Eduardo Vessoni
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Importância da área

Os bens históricos e arqueológicos da região do Seridó estão detalhados em várias pesquisas feitas na região, segundo o mestre em arqueologia pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e integrante do Grupo Seridó Vivo, Joadson Vagner Silva.

De acordo com ele, o patrimônio histórico no Seridó é formado por sítios de arte rupestre de três categorias:

  • Sítios da tradição Nordeste - "São aqueles em que você consegue identificar a maioria das representações pintadas"
  • Sítios da tradição agreste - "Eles têm formas que nem sempre conseguimos reconhecer e que não têm o mesmo nível interpretação."
  • Itacoatiaras, ou desenhos em pedras - "São grafismos feitos em baixo relevo, petróglifos."

Há risco ao patrimônio arqueológico porque a construção usa o desmonte rochoso, que é feito com dinamite. Essas pinturas estão em locais de rochas muito frágeis. Os sítios correm risco mesmo a quilômetros de distância.
Joadson Silva

Sítio Arqueológico Xiquexique I, em Carnaúba dos Dantas
Sítio Arqueológico Xiquexique I, em Carnaúba dos Dantas Imagem: EMPROTUR/Divulgação
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Joadson afirma que a região começou a ser pesquisada ainda nos anos 1920, mas foi a partir dos anos 1970 que começaram as pesquisas arqueológicas mais avançadas, que acabaram apontando que a região concentra "um dos mais importantes territórios de pesquisa arqueológica do país".

O Seridó guarda uma riqueza, do ponto histórico, similar à da Serra da Capivara. Havia grupos similares que ocupavam as duas regiões do Nordeste. Apesar disso, o Seridó não é protegido, por exemplo, com a criação de uma unidade de conservação.
Joadson Silva

Pedra Furada, formação rochosa mais icônica do Parque Nacional da Serra da Capivara
Pedra Furada, formação rochosa mais icônica do Parque Nacional da Serra da Capivara Imagem: Claudia Regina, CC BY-SA 2.0

É na Serra da Capivara que está instalado o Museu do Homem Americano, com um dos maiores parques de pinturas rupestres do mundo. As descobertas levantaram a hipótese de que o homem poderia ter vivido, nesse local, há 60 mil anos, segundo o Iphan.

O pesquisador se dedica a estudar esses sítios e afirma que uma das maiores preocupações é que áreas do empreendimento se sobrepõem àquelas que concentram a maior parte dos sítios do município de Carnaúba dos Dantas, considerados de grande relevância arqueológica.

Outro ponto que ele questiona é a destruição do meio ambiente. "Ao se fazer um empreendimentos dessa magnitude, mesmo que se preserve o sítio, acaba-se perdendo parte dele, além do seu contexto".

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Esse patrimônio está em perigo porque, para ser reservado, ele tem de existir naquele contexto de caatinga e de roça. E um parque eólico necessita desmatar e fazer uma mudança no ambiente. Além de os sítios correrem risco por estarem ao lado de mega estruturas, que são aerogeradores [torres].
Joadson Silva

Sítio Arqueológico Xiquexique I, em Carnaúba dos Dantas (RN)
Sítio Arqueológico Xiquexique I, em Carnaúba dos Dantas (RN) Imagem: Eduardo Vessoni

Respeito à legislação

Em nota, o grupo Casa dos Ventos explica que o projeto "contempla rígida observância" à lei e será iniciado após a conclusão de todos os trâmites do processo de licenciamento, que está sendo coordenado pelo Idema (Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte).

O empreendimento tem realizado uma série de estudos e análises profundas com o objetivo de mitigar todo e qualquer impacto. Os sítios arqueológicos já conhecidos e de relevância atestada pelos órgãos públicos estão devidamente mapeados e a uma distância segura do empreendimento para que sejam totalmente preservados.
Casa dos Ventos

Segundo a empresa, "o zelo com a riqueza arqueológica, cultural e social é considerado condição máxima da atuação da empresa". Por isso, diz, o projeto original foi alterado, atendendo as comunidades do entorno do empreendimento.

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A empresa diz que mantém diálogo com os moradores locais e que o estudo de impacto ambiental propõe 31 programas para "garantir a conservação ambiental da região onde o projeto será construído, abrangendo os meios físico, biótico e socioeconômico".

Outras ações de investimento social privado no território serão desenvolvidas pela empresa no período de implantação do empreendimento.
Casa dos Ventos

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • Diferentemente do que informava a primeira versão do texto, a partir dos anos 1970 começaram as pesquisas arqueológicas mais avançadas, e não as geológicas. O texto foi corrigido.

Reportagem

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