Menino manda carta a juíza e tem nome de padrasto como 2º pai em certidão
Em 2020, aos 8 anos de idade, Ângelo Ravel Nunes de Sousa escreveu uma carta e levou até uma rádio de Quixeramobim (CE), onde mora com a família. A carta era para a "senhora juíza" — sem especificar nome.
O pedido não era por um brinquedo ou algo do tipo, mas para que ele tivesse o padrasto reconhecido como pai — e o sobrenome dele inserido na sua certidão de nascimento.
A família procurou então a Defensoria Pública do Estado, que entrou na Justiça e, depois de quase quatro de anos de trâmite, Ravel — como gosta de ser chamado — tem um novo pai e um novo sobrenome: Moraes, herdado do do agricultor José Adilton, 35.
A decisão foi dada não por uma juíza, mas pelo juiz da 2ª Vara da Comarca de Quixeramobim, Rogaciano Bezerra Leite Neto. A sentença que decidiu pela dupla paternidade é de 28 de fevereiro.
As manifestações de afeto e carinho por parte de pessoa próxima à criança somente terão o condão de convolarem-se numa relação de filiação, se, além da caracterização do estado de posse de filho, houver, por parte daquele que despende o afeto, a clara e inequívoca intenção de ser concebido juridicamente como pai ou mãe daquela criança.
Sentença do juiz Rogaciano Bezerra
Relação de pai e filho
As histórias de José Adilton e de Ravel começam a se desenhar depois que a mãe Teresa de Nunes de Sousa, 38, e o pai biológico de Ravel se separaram em 2016.
No ano seguinte, em janeiro de 2017, ela e José Adilton iniciaram um relacionamento e passaram a morar juntos — foi quando a criança e então padrasto começaram a conviver com proximidade.
Apegado ao novo pai, três anos depois ele decidiu escrever uma carta e disse que queria enviar o texto à "juíza" para pedir que o padrasto virasse o seu pai.
Senhora juíza, quero pedir encarecidamente que a senhora troque meu nome. Meu nome é Angelo Ravel Nunes de Sousa e quero tirar o sobrenome Sousa. É o sobrenome do meu pai biológico. Eu gostaria muito de usar o sobrenome do meu verdadeiro pai, que é o meu padrasto. Ele sim é um pai de verdade pra mim. Ele esteve comigo nos momentos bons e ruins.
Trecho da carta de Ravel
Em princípio, a família achou que era melhor não levar a carta a público, já que desconhecia haver meios legais para a troca do nome. Mas, após o pedido do menino virar notícia na rádio, a Defensoria Pública entrou em contato com o locutor, que avisou Ravel e os parentes.
A gente não acreditava que fosse possível [colocar o nome de outro pai]. Pensamos que seria melhor ele não levar a carta para a juíza porque ele poderia esperar e se frustrar, mas ele mandou para rádio, o locutor leu e fez sucesso.
José Adilton
O novo pai diz que é só alegria com a decisão e aguarda ansioso pela confecção da nova certidão. "Nós temos uma relação de pai e filho, desde que cheguei ele me considerou e eu também."
Adilton -- que trabalha arrancando tocos em terreno próximo -- fez 35 anos na semana passada, mas decidiu não comemorar para esperar a nova certidão. E depois disso vai fazer a festa.
A mãe Teresa conta que não tem mais contato com o pai biológico de Ravel. Na ação, ela afirmou que ele pagou apenas uma única vez a pensão alimentícia.
A última vez que tive contato foi na ação do divórcio, em março de 2018, quando ficou acertado que ele pagaria uma pensão de R$ 200 e iria ficar com Ravel de 15 em 15 dias. Mas ele só pagou uma vez, e Ravel não quis mais ir passar o final de semana lá, então não tive mais contato.
Teresa, mãe de Ravel
Teresa diz que sempre admirou a relação de Adilton com Ravel. Hoje, o casal tem outro filho, o pequeno Moraes Neto, de 6 anos.
Ele é uma pessoa que sempre amou Ravel e é muito dedicado: se levanta às 3 horas todo dia, tira o leite das vacas do cunhado e depois vai trabalhar. A gente não tem luxo, mas tem o necessário.
Teresa, que é beneficiária do Bolsa Família
Ravel conta que a decisão do juiz incluindo aquele que considera o verdadeiro pai foi uma vitória de sua persistência.
Eu considero ele o meu verdadeiro pai. Eu estou muito feliz, era uma coisa que a gente queria muito. Diziam que não ia dar certo, mas eu sempre acreditei.
Ângelo Ravel
Análise de assistente social e depoimentos
A relação de pai e filho foi relatada por diversas pessoas ouvidas no processo. Um parecer do Ministério Público do Estado do Ceará também foi favorável ao reconhecimento do vínculo paternal. Na nova certidão, Ravel terá dois pais.
Neste momento, a opção foi solicitar apenas a inclusão do sobrenome do Adilton, sem retirar o sobrenome do pai biológico, porque o Ângelo é apenas uma criança. É importante ter cautela. Segundo a legislação, ele é uma pessoa em desenvolvimento e retirar o sobrenome do pai biológico significaria abrir mão de direitos sucessórios [herança], por exemplo.
Jefferson Leite, defensor público
A Justiça ainda pediu que o vínculo fosse endossado por um laudo elaborado por uma assistente social da Prefeitura de Quixeramobim, que visitou a família, conversou com as partes e entrevistou testemunhas.
No momento da entrevista foi possível observar e identificar que a criança Ângelo Ravel é muito inteligente, educado, estudioso e já tem definições de suas escolhas, destacando o desejo de ter o sobrenome do Sr. Adilton em seu registro civil, além da afinidade que existe entre eles, uma relação de afeto e cumplicidade com todos os membros familiares.
Estudo feito pela assistência social
Ravel e o novo pai também prestaram depoimento e confirmaram o desejo do reconhecimento da paternidade.
Prestigia-se por meio deste instituto socioafetivo a verdadeira relação de paternidade e os direitos e deveres a ela inerentes, conferindo àquele que de fato exerce as atividades próprias do poder familiar o status formal correspondente, em atenção ao afeto e à busca da felicidade.
Sentença do juiz Rogaciano Bezerra
Reportagem
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