Última pena de morte no país escondeu revolta de escravizados em AL em 1874
A história por trás do enforcamento de Francisco, um negro escravizado que foi o último condenado à pena de morte no Brasil, revela que havia uma intenção de rebelião contra as violências que sofriam em Pilar (AL).
Francisco (que não tinha sobrenome) foi executado em 28 de abril de 1876, acusado de matar o capitão João Evangelista de Lima e sua mulher, Josepha Martha de Lima, nos dias 26 e 27 de abril de 1874, respectivamente. Ele foi morto na estrebaria, e ela no dia seguinte à noite na casa da fazenda que viviam.
O processo foi tratado à época como sigiloso e, fora as autoridades, ninguém mais à época consultou ele. Ele foi "reencontrado" em 2022 após trabalho de recuperação de arquivos do Centro de Cultura e Memória e da Comissão de Gestão da Memória do TJ-AL (Tribunal de Justiça de Alagoas).
A pesquisa desse processo foi o tema do trabalho de conclusão de curso em história da mestra em direito Hilda Maria Couto Monte. Ela agora prepara a edição para lançar um livro contando detalhes do caso histórico.
Versão oficial omitiu fatos
A versão apresentada à época pela imprensa, dominada pelos senhores de engenho, tratava apenas como crime como bárbaro a "pessoas respeitadas" da sociedade de Pilar, que fica hoje na região metropolitana de Maceió.
Não há referências sobre as crueldades que o casal e outros da elite escravista local praticavam contra seus escravizados e que teriam ensejado revolta e uma tentativa de insurreição. "Eles eram tratados como monstros, e as vítimas, pessoas boas da cidade", diz Hilda.
Quatro escravizados foram denunciados pelos crimes, entre eles Francisco, que viria a ser o único morto. Mas eles tiveram destinos bem diferentes.
Prudêncio, o líder do grupo e que era de propriedade do capitão, foi morto pela Guarda Nacional na operação que tentava o prender no município de Pesqueira (PE). No confronto, ele ainda conseguiu matar três membros da guarda e feriu dois gravemente, antes de ser alvejado.
Já Francisco foi capturado e levado para prisão, onde ficou até a data da execução.
Um terceiro outro escravizado, de nome Vicente, também foi condenado à morte. Entretanto, a justiça local não teve autorização do Império para fazer a execução.
O pedido de graça a Dom Pedro 2º não teve resposta; como tinha de ter autorização expressa para executar --como foi o caso de Francisco--, resolveram deixar ele em prisão perpétua, e ele morreu depois em circunstâncias não claras.
Hilda Monte
O quarto denunciado, João Alves, era de propriedade de um senhor de engenho local e atuava como coveiro da cidade. Ele chegou a ser denunciado, mas não foi condenado.
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Quero receberRebelião em curso
Para conhecer a fundo a história, Hilda passou mais de um ano se debruçando sobre o processo, de 275 páginas, para conhecer os detalhes desconhecidos dessa história. Mas foi além: traçou um perfil de vida dos escravizados.
Para Hilda, a morte do casal não seria um ato isolado, mas guardava uma ideia de rebelião contra o tratamento degradante que tinham, com constantes açoites e fome.
Esse crime vai muito além de duplo assassinato mas uma tentativa de um verdadeiro levante contra as agruras da condição de escravidão, que a população negra do Pilar vivenciava na época. Ele faz parte de uma tentativa de insurreição que foi mal sucedida. Uma prova disso é que outros negros sabiam do planejamento das mortes.
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A pesquisa também descobriu, pelos ofícios de caráter reservados trocados entre as autoridades no processo, dentre elas o presidente da província [espécie de governador], os chefes de polícia e juiz da cidade, que todos já estavam cientes de uma insatisfação generalizada e de algumas movimentações "estranhas".
A elite se valia da força policial local; ou seja, de todo o aparato do Império, para castigar os negros. Eles já viviam, pela condição de escravizados, em condições subumanas e de constante tensão, e ainda eram constantemente torturados na delegacia. Nos dias que antecederam os crimes, a revolta se podia sentir 'no ar'.
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O plano inicial, diz, seria matar pelo menos mais uma pessoa: o médico Joaquim Telesphoro Ferreira Lopes Vianna, que na noite em que o capitão foi morto, foi chamado pelos escravizados para atendê-lo. Entretanto, teria percebido que se tratava de uma emboscada e cita em depoimento que não foi porque viu "vultos no quintal".
Esse médico era o dono de Francisco e amigo do capitão; mas com medo de sair dos seus aposentos, avisou a Francisco que o chamara que só iria no outro dia. Isso o salvou de ser morto.
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O médico era o dono de Francisco, que guardava uma outra mágoa: ele teve o casamento pedido com a outra escravizada negado por Joaquim (à época, eles só poderiam casar com autorização dos donos).
Corria um boato que haveria um triângulo amoroso, e por isso o casamento foi negado. E Francisco guardava uma raiva disso.
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Torturas
A revolta desses negros ainda tinha motivos que não eram revelados, com base na a forma cruel como eles eram tratados.
Vicente, um dos escravizados denunciado pelo crime, pertencia ao capitão João e, antes de ser comprado, vivia em uma fazenda para onde eram levados os negros considerados preguiçosos ou "respondões".
Nesse local, que ficou conhecido como fazenda "quebra bunda", eram praticadas uma série de maus tratos para "amansar" (termo que era usado) o escravizado e devolvê-lo ao dono para que aceitasse jornadas desumanas de trabalho sem reclamar. "Lá eles tinham todo tipo de instrumento de tortura.
Além disso, um dos pontos que mais causou revolta à época da elite foi que os escravizados não pouparam a vida esposa do capitão. Para Hilda, a história revelada deixa claro os motivos que a levaram a matá-la também.
Ela parecia uma mulher amargurada, que era deixada de lado; e ela descontava nos negros, que ficavam sem comida por vários dias; nem o resto de alimentos ela dava. Isso gerou uma ira deles.
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Francisco era muçulmano
Antes de morrer, ao ser despido para colocar a camisa de 11 varas (roupa usada para execuções, segundo mandava o Código de Processo Criminal do Império), Francisco deixou cair por baixo da sua roupa alguns patuás. Ali surgiu uma revelação importante.
Patuás são rezas que normalmente os negros forçados a deixar o islamismo colocavam para proteção. Eles achavam que não iam ser atingidos pelo mal se tivessem colado essas rezas. Quando o carcereiro tira a roupa do Francisco, ele fica indignado e a ficha dele cai; até então, ele acreditava que iria ocorrer algo que o salvasse da forca.
Hilda Monte
Por conta disso, e pela tradicional dissimulação de muçulmanos para manter escondidos sua religião (à época o Brasil era um país de religião oficial católica), Hilda diz desconfiar que ele e Prudêncio eram, na verdade, malês.
Com esses elementos, ela diz acreditar que a tentativa pode ter tido inspiração na revolta do malês, ocorrida em Salvador em 1835. "O Prudência era um exímio lutador, tinha várias técnicas, tanto que antes de ser morto ele mata cinco da guarda. Isso era uma característica do malês, e esses negros circulavam na região."
Outro ponto que ela destaca é que, após matarem o capitão, Francisco e Prudêncio arrancaram a barba dele.
Isso faz parte de uma espécie de assinatura deixada. Na tradição que eles têm, quem morre sem a barba leva consigo suas injustiças e vai direto para o juízo final. É a condenação eterna para a religião mulçumana.
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Sem defesa
A pesquisadora chama a atenção para outro detalhe que era desconhecido do processo: Francisco não teve direito à defesa. Um detalhe importante é que, à época, a lei proibia o escravizado de falar mal de seus donos.
O Código de Processo Criminal proibia que ele falasse qualquer coisa que desabonasse o seu senhor; por isso a defesa foi prejudicada. A lei perpetuava uma situação de ausência de defesa para os negros escravizados.
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Após denúncia da promotoria, a sentença de morte foi dada pelo juiz Pedro Antônio da Costa Moreira, com base no decidido previamente pelo Tribunal do Júri.
Francisco chegou a pedir o último recurso, a graça ao imperador, que foi negada por D. Pedro II. A ordem para executá-lo foi dada pelo ministro da Justiça, Visconde Cavalcante.
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