Carlos Madeiro

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Agricultor ganha certidão de nascimento após 46 anos: 'Como não existisse'

Edmilson dos Santos se tornou um cidadão brasileiro registrado. Após 46 anos de vida, ele ganhou nesta quinta-feira (20) seu primeiro —e único— documento: a certidão de nascimento emitida pelo Cartório de Traipu, no sertão alagoano, onde nasceu em 1979.

O agricultor mora hoje no povoado Chã do Barro, no vizinho município de Girau do Ponciano (a 153 km de Maceió), onde planta para subsistência em um terreno pertencente ao seu sogro. Nunca foi consultado por um médico (exceto uma vez emergência) ou dentista, nem teve acesso a serviços públicos, por exemplo. "É como se ele não existisse", explica a juíza Natália Cerqueira de Castro, autora da sentença.

O agricultor não tem aparelho celular, e para falar com ele, o UOL precisou ligar para um amigo que o acompanhou até o cartório nesta quinta-feira.

Edmilson nunca estudou na vida, e por isso não sabe ler ou escrever. "Meu avô que me botou para trabalhar desde novo na roça, e nunca deixei", diz.

Eu nunca tive nada [de documento] na vida. Só fazia meu serviço: plantar macaxeira, feijão, milho e abóbora para comer.
Edmilson

Certidão emitida pelo cartório de Traipu (AL)
Certidão emitida pelo cartório de Traipu (AL) Imagem: Arquivo pessoal

Certidão para batizar filha

Vivendo em uma união estável há cerca de 25 anos (não lembra a data exata) e com quatro filhos, ele afirma que só decidiu buscar a Justiça para ter uma certidão em 2022, quando o padre que iria batizar Maria Luna (sua filha menor, hoje com 2 anos de idade) disse que era necessário ele ter ao menos uma certidão de nascimento para isso. "Aí eu fui atrás, não queria deixar ela sem batismo", explica.

Edmilson nunca conheceu o pai, que o abandonou quando ainda era bebê. Sua mãe, que o criou junto os pais dela, morreu há quatro anos.

Sem documentos, ele não pôde colocar seu nome no registro em nenhum dos filhos —o que pretende fazer de imediato a partir de agora.

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Os dois irmãos e as duas irmãs que ele possui têm certidão. Por que então só ele não tem? "Porque minha mãe não fez na época", responde com a sinceridade peculiar de um sertanejo.

No hospital, cadê o cartão do SUS?

Em 2022, Edmilson conta que viveu o momento mais complicado da vida: com uma dor intensa, procurou pela primeira vez um hospital na cidade.

Ao chegar lá, porém, houve a esperada dificuldade inicial para ser atendido, já que na recepção foi cobrado um documento de identificação.

Quem o ajudou foi o seu melhor amigo, o também agricultor Ernandes Messias dos Santos, 39. Ele conta que precisou interceder por Edmilson para que ele fosse atendido.

Eu tinha registro no hospital e eu que o levei; disse isso, mas a mulher afirmou que tinha de ter ao menos o cartão do SUS. Aí eu disse: 'como ele vai ter, se não tem nem o registro? Vai deixar o homem morrer por causa disso?'
Ernandes, amigo de Edmilson

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Após uma negociação, o médico de plantão resolveu atender o paciente mesmo sem registro. Inicialmente, havia suspeita de que Edmilson estava com pedras no rim ou na vesícula, mas depois de exames, isso foi descartado. "O doutor disse que a dor nas costelas dele era por conta de um mau jeito".

Edmilson e o amigo Ernandes no cartório de Traipu (AL) em busca da certidão de nascimento
Edmilson e o amigo Ernandes no cartório de Traipu (AL) em busca da certidão de nascimento Imagem: Arquivo pessoal

Como chegaram até a data

A ação de Edmilson foi ingressada em junho de 2022 pela DPE (Defensoria Pública do Estado). Por conta da falta de documentos, o MP (Ministério Público) de Alagoas foi acionado para se manifestar no caso.

A sentença que deu o direito a Edmilson ter uma certidão foi dada na quarta-feira (19) pela juíza Natália Cerqueira de Castro, da Vara de Único Ofício de Girau do Ponciano.

A juíza explica que a verdadeira identidade de Edmilson foi comprovada após pegar o nome dos pais e dos avós e ouvir testemunhas. Com isso, chegaram ao local, o ano e o mês de nascimento dele. "É como se ele não existisse", disse a magistrada.

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Como não se sabia o dia exato de nascimento, foi escolhida a data de 19 de março, dia de São José, uma data marcante e simbólica na cultura nordestina: diz a crença popular que se chover nesse dia, o ano será de boa colheita.

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