Carlos Madeiro

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Reportagem

Justiça ignora cota e manda UFBA nomear professora branca no lugar de negra

A UFBA (Universidade Federal da Bahia) foi obrigada a contratar uma professora branca aprovada no concurso de professor substituto de canto lírico, em vez de uma negra já nomeada e ensinando na instituição, classificada pelas cotas raciais.

A decisão do juiz Cristiano Miranda de Santana, da 10ª Vara Federal Cível da Bahia, é de 17 de dezembro de 2024, mas o caso só foi divulgado em nota da instituição neste domingo. O caso gerou revolta de entidades.

Apenas uma vaga foi ofertada no edital de 2024, e pelo critério racial, a nomeada foi a cantora negra Irma Ferreira. Juliana Franco Nunes procurou a Justiça para questionar a indicação, alegando que tirou nota final maior que a concorrente (8,40 e 7,45), segundo resultado divulgado pelo Departamento de Música em 6 de setembro de 2024.

Juliana é cantora, dubladora e doutora em pedagogia vocal. Já Irma é cantora e doutoranda em educação musical. Elas foram as únicas a se inscreverem para a vaga.

Não se mostra lógico, pelo menos nesta análise preliminar, que a candidata aprovada em primeiro lugar tenha sido preterida em razão da aplicação de quotas, até porque a Lei nº 12.990/2014, que trata da reserva de vagas para candidatos negros em concursos públicos federais, estabelece o percentual de 20% das vagas oferecidas aos candidatos que se autodeclarem pretos ou pardos.
Decisão do juiz Cristiano Miranda de Santana

A UFBA recorre da decisão, e o caso está agora com a desembargadora federal Rosana Noya Alves Weibel Kaufmann, do TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região).

O UOL procurou as duas. Irma preferiu não conceder entrevistas no momento. Também tentou contato direto com Julianda , pelo seu Instagram, mas não houve retorno até aqui.

Já os advogados de Juliana mandaram uma nota afirmando que, apesar de a autora ser a favor das cotas raciais, entende que "não se pode corrigir uma injustiça por meio da prática de outra."

A decisão judicial, portanto, não representa qualquer oposição à política de cotas, mas sim a estrita observância da legislação vigente. É preciso ter consciência cidadã. Não se pode distorcer uma política pública legítima em afronta aos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição.
Nota assinada pelos advogados Gabriel Manzini e Paulo Cavalcanti

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Escola de Música da UFBA
Escola de Música da UFBA Imagem: Google Street View

O edital e as normas

O edital questionado é do PSS (Processo Seletivo Simplificado) para contratação temporária de 83 professores, entre elas "canto lírico", disciplina vinculada à Escola de Música da UFBA.

Segundo a UFBA, todos os concursos da instituição destinam vagas "considerando a totalidade de vagas do edital e não aplicando qualquer fracionamento sobre especialidades ou áreas". Ou seja, em caso de apenas uma vaga, a primeira é de cotista e, em caso de não ocupação, passa para a melhor colocada na ampla concorrência.

Esse entendimento é adotado desde dezembro de 2018, e foi construído "após intenso debate e colaboração de diversos agentes públicos, inclusive o Ministério Público federal, e de movimentos sociais". Para ter acesso à vaga, os candidatos autodeclarados negros ainda são avaliados no processo de heteroidentificação por uma comissão criada para este fim. Isso vai validar ou não a autodeclaração.

A atual forma de fazer concursos e processos seletivos simplificados é uma prática da UFBA em mais de oito editais, e é aplicada por outras instituições federais de ensino e órgãos públicos. O percentual de 20% das vagas reservadas pelo edital é sempre observado, na classificação geral do concurso.
UFBA

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A retirada da vaga gerou revolta de entidades ligadas à UFBA e movimento negros, que publicaram notas criticando o teor da decisão. Um ato público foi marcado para quarta-feira.

O afastamento da professora Irma de suas funções, já em pleno exercício da docência, representa um constrangimento institucional inaceitável e um ataque simbólico a políticas e ações afirmativas. Situações como essa ferem a dignidade das pessoas envolvidas e produzem efeitos desmobilizantes, fortalecendo os obstáculos ao ingresso e permanência, em espaços acadêmicos e profissionais, de pessoas negras, indígenas e pertencentes a demais grupos historicamente excluídos.
Associação Brasileira de Educação Musical

O que alega Juliana

Na ação, Juliana alegou que a nomeação da segunda colocada "viola os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência e isonomia, previstos no art. 37 da Constituição Federal." O argumento foi acolhido pelo juiz, que entendeu que não é possível nomear a segunda colocada para o caso de apenas uma vaga.

Ora, tendo o Edital nº 02/2024 da UFBA contemplado apenas uma vaga para o cargo em questão e sendo a impetrante aprovada na primeira colocação na ampla concorrência, deve ser garantido o seu direito à nomeação e posse, em observância ao § 1º do art. 3º da Lei 12.990/2014, que foi explícito em estabelecer que 'a reserva de vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público for igual ou superior a três'.
Decisão do juiz Cristiano Miranda de Santana

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UFBA rebate

Em nota, a UFBA afirmou que "discorda veementemente da decisão" e considera o entendimento "equivocado" por se opor às recomendações do MPF (Ministério Público Federal).

A aplicação da reserva de vagas sobre o conjunto das vagas das áreas do processo seletivo é coerente com a finalidade da política de cotas em concursos públicos, dando efetividade à Lei n. 12.990/2014, nos moldes da relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF) que, na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n. 41, julgou a constitucionalidade da Lei.
UFBA

Ainda segundo a nota, "há jurisprudência do STF para o tema, como também o MPF vem referendando o método adotado pela Universidade para os concursos promovidos por diversos órgãos públicos".

A Universidade discorda dessa determinação judicial, considera que a Lei e a decisão do STF devem ser respeitadas, envidará todos os esforços para revertê-la e conclama a todos nessa mesma defesa.
UFBA

Segundo caso público

Médica Lorena Pinheiro
Médica Lorena Pinheiro Imagem: Arquivo pessoal

Outro caso similar ocorreu em 2024. A otorrinolaringologista negra Lorena Pinheiro se inscreveu como candidata autodeclarada negra e teve homologada sua primeira colocação no dia 13 de agosto. O edital da UFBA seleção previa que, para os casos de apenas uma vaga, o critério de cota seria o primeiro para escolha.

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Entretanto, ela perdeu a vaga da cadeira para a médica Carolina Cincurá Barreto, que acionou o judiciário por entender que a nota maior lhe daria direito à nomeação. A justiça aceitou e mandou a UFBA nomeá-la no lugar de Lorena.

A UFBA recorreu da decisão, e o MPF (Ministério Público Federal) deu parecer favorável a Lorena. Após recurso, a juíza Arali Maciel Duarte, da 1ª Vara da Justiça Federal da Bahia, decidiu que as duas deveriam ser nomeadas para o cargo, e Lorena tomou posse no final de outubro.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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