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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como as democracias vivem

Colunista do UOL

30/12/2021 09h33

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Em 1928, noventa anos antes de livros sobre a derrocada da democracia virarem moda no mercado editorial, o poeta americano Thomas Stearns Eliot, conhecido como T. S. Eliot (1888-1965), publicou em sua revista The Criterion o ensaio "The Literature of Fascism", no qual rejeitava a literatura do fascismo juntamente com a do comunismo.

"Devo afirmar, além disso, uma triste certeza: que o governo democrático foi reduzido a quase nada", acrescentou o autor. "Contudo, outra coisa é ridicularizar a ideia de democracia", distinguiu ele. "A pergunta moderna, como popularmente é feita, diz: 'A democracia está morta, o que a substituirá?' Ao invés, deveria ser: 'O arcabouço da democracia foi destruído; como podemos, com os materiais que temos à disposição, construir uma nova estrutura em que a democracia possa viver?'"

Eliot "não era um entusiasta da democracia abstrata, da ideologia do democratismo", observou seu compatriota Russel Kirk (1918-1994) em A política da prudência, livro que reuniu em 1993 textos de conferências apresentadas desde 1986; "mas de uma democracia saudável, enraizada em antigas instituições, que aspirava a restaurar".

Em 27 de dezembro de 2021, dias após um ex-advogado da Odebrecht admitir a Deltan Dallagnol que os 15 bilhões de reais recuperados pela Lava Jato "era dinheiro de corrupção", Sergio Moro respondeu a questionamentos de empresários sobre o Supremo Tribunal Federal, falando em "movimento de anulação de condenações que gera descrédito, ruim para as instituições".

"Compartilho dessa crítica, com a ressalva de que sou institucional. O remédio para isso são mudanças e reformas que melhorem nossas instituições. O mero ataque e o desrespeito não é algo que constrói. É preciso pensar em reformas institucionais no STF. Transformá-lo num tribunal constitucional e pensar em mandato para os ministros", disse o ex-juiz, que dias depois citou casos em que "o cara confessa que roubou e aí vem lá o Tribunal e diz: não podia ter sido julgado pela Justiça A. Ora, com todo respeito, isso é errado!"

Como expliquei no artigo "Jair Bolsonaro é a cortina de fumaça do sistema", publicado em 10 de agosto, "o mero ataque e o desrespeito" até ajudam a acobertar e fortalecer o sistema da corrupção, uma vez que, ostensivos e caricaturais, eles são mais facilmente entendidos e repelidos como potenciais golpes de Estado que o golpismo velado e contínuo da frente ampla pela impunidade - este que, através da aplicação casuística de novos entendimentos, corrói a segurança jurídica e o sistema democrático por dentro, para blindar corruptos e garantir a farra do establishment com dinheiro do povo. Em nome do combate à imposição da ditadura, tolera-se ainda mais, então, a sabotagem da democracia.

Os arroubos retóricos de Bolsonaro contra os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes podem ter-se dissipado por ora, mas a campanha do presidente contra a vacinação e sua vagabundagem em meio a outras crises, como a das chuvas na Bahia, fazem o sarrafo humanitário descer de tal maneira que qualquer retorno a um estágio anterior de governança passa a ser percebido como um alívio, mesmo que esse estágio seja o da democracia abstrata, defendida por ideólogos do democratismo, a serviço da chapa com codinomes no departamento de propinas da Odebrecht, Lula-Alckmin, ou "amigo"-"pastel". É o conformismo com o status quo brasileiro.

O guardião do sistema, Gilmar Mendes, não apenas havia garantido a soltura de Lula mudando seu voto sobre a prisão em segunda instância, mas, juntamente com Ricardo Lewandowski e Kassio Nunes Marques, aliviou a barra do tucano Eduardo Azeredo no caso do mensalão mineiro; do filho 01 do presidente, Flávio Bolsonaro, no das rachadinhas; e de caciques do Centrão, como Ciro Nogueira e Arthur Lira, no do petrolão. Lira, como presidente da Câmara, ainda está à frente do orçamento secreto - o novo mensalão parlamentar -, igualmente liberado pelo plenário do Supremo, que se fez de sonso, conforme previsto aqui, com articulação política e voto de Gilmar.

Vencido em todos esses julgamentos, o ministro Luiz Edson Fachin ao menos registrou que a rubrica RP9, referente às emendas de relator, "carece de previsão constitucional"; que, "ao se anonimizar, por meio do relator-geral, as emendas, perde-se a transparência"; que, "sem saber quem indicou o beneficiário desses recursos, fica difícil - ou mesmo impossível - avaliar se a destinação orçamentária atendeu à regra da maioria ou a um interesse local"; que, assim, "não há juízo de racionalidade possível sobre a execução orçamentária"; e que ela só poderia ser liberada "se o vício quanto à falta de publicidade tivesse sido devidamente sanado, o que não ocorreu", conforme também explicado em detalhes nesta coluna.

Quando a cúpula dos Poderes está unida para atropelar princípios constitucionais, só existe entre Judiciário, Legislativo e Executivo uma separação de fachada, atrás da qual se definem os favorecimentos permitidos, como os 16 bilhões de reais dos brasileiros em emendas secretas, somados aos 5 bilhões de fundão eleitoral, nenhum dos quais destinados às vítimas das chuvas. Para elas, os especialistas Lira e Gilmar cogitam criar outro fundo (igualmente obscuro?) de liberação imediata. Indicados por presidentes e avalizados por senadores, membros do STF ainda blindam detentores de foro privilegiado do Executivo e do Legislativo, e são blindados por eles, como no caso da CPI da Lava Toga, barrada no Senado após pressão de Jair e Flávio.

Isto sem falar em apaniguados de senadores no Conselho Nacional do Ministério Público e em tribunais de contas, como o do investigado Renan Calheiros no TCU, Bruno Dantas, o comensal do jantar lulista que exigiu a divulgação do salário de Moro na iniciativa privada, acolhendo pedido feito por um procurador, Lucas Furtado, que nem sequer tem a atribuição do caso, cuja responsabilidade é de Júlio Marcelo de Oliveira, um defensor do fim das indicações políticas em tribunais de contas.

"Nunca paguei ou recebi propina, fiz rachadinha ou comprei mansões", reagiu Moro, distinguindo-se dos Bolsonaro e de Lula. "Não enriqueci no setor público e nem no privado. Não atuei em casos de conflito de interesses. Repudio as insinuações levianas do procurador do TCU a meu respeito e lamento que o órgão seja utilizado dessa forma."

Assim como Oliveira, Moro defende uma democracia saudável, enraizada em antigas instituições, que aspira a restaurar. Por isso, propõe mandatos para ministros do STF, a redução da "verticalização" que congestiona o Supremo com questões solúveis em primeira e segunda instâncias, a volta da prisão nesta última, a criação de tribunal anticorrupção autônomo, o fim de foro privilegiado e reeleição, além de outras medidas capazes de evitar a captura política de Poderes e órgãos de Estado, que deveriam servir à sociedade.

O embaixador da União Europeia no Brasil, Ignacio Ybáñez, ao elogiar como "bom livro" o recém-lançado Contra o sistema da corrupção, de Moro, destacou o seguinte trecho: "Se o cidadão dá as costas para os assuntos públicos e para de se importar se os seus governantes trabalham para o bem comum ou apenas para os seus interesses mais mesquinhos, não há democracia plena." O ex-juiz agradeceu, reiterando crer em cada palavra escrita. "Uma democracia vibrante depende de cidadãos ativos", completou.

Sem eles, de fato, é impossível construir uma nova estrutura em que ela possa viver, após a destruição de seu arcabouço moral.