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Jamil Chade

Governo sinaliza de que abriria mão de projeto regional por aliança com EUA

Colunista do UOL

25/10/2019 14h26

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Nos últimos três anos, vimos uma transformação inédita da política do Reino Unido. Desde a decisão de sair da UE, os debates passaram a se concentrar sobre a forma pela qual o divórcio ocorreria. Governos caíram e a libra despencou. A angústia e exaustão tomaram conta do país. E tudo isso sem ainda uma solução.

Agora, do outro lado do Atlântico, temos os primeiros sinais - ainda que incipientes - de um eventual divórcio. Desta vez no Mercosul. Logo no início do governo de Jair Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo mandou trocar todos os passaportes para que o emblema do país voltasse a substituir o símbolo do Mercosul. Deixamos de usar a aliança de casamento em todas as ocasiões. Seria uma premonição ou um ato premeditado?

Agora, o governo brasileiro quer promover um corte profundo das tarifas de importação, o que exigiria um acordo também com o restante do Mercosul. Hoje, os quatro países adotam barreiras comuns a produtos que chegam do exterior.

O que o governo diz querer é uma abertura da economia nacional. Mas se em todo o mundo isso é feito de forma negociada e recíproca, Brasília avalia tomar essa medida de maneira unilateral. Ou seja, abrimos nosso mercado para produtos estrangeiros, sem pedir vantagens para nossos produtos pelo mundo.

Não é uma surpresa o fato de os demais países do Mercosul estarem resistindo, principalmente se for confirmada a mudança política na Argentina e Uruguai nas próximas semanas.

Dentro do governo, não se esconde que existe a percepção de que, se o Brasil quer ir adiante com seu plano comercial, terá de se dissociar do restante do Mercosul.

Alguns chegam a levantar a hipótese de que talvez seja justamente isso o que o governo quer e usaria o argumento das tarifas como desculpa perfeita para o rompimento. A chegada de eventuais novos governos nos países vizinhos poderia acelerar esse divórcio. Bolsonaro fez campanha explícita contra alguns desses candidatos.

Nesta sexta-feira, o jornal Folha de S. Paulo trouxe detalhes de como a chancelaria já começa a avalia qual seria o impacto da opção de um divórcio. O abalo, porém, seria ainda maior que qualquer mudança na estrutura tarifária. Muito além de um aspecto comercial e de um impacto em certos setores, sair do Mercosul representaria uma das maiores transformações da política externa da era democrática do Brasil.

No momento da criação do Mercosul, a base da aproximação não foi comercial. Mas sim política. Brasil e Argentina, com suas respectivas ditaduras, vinham de anos de estranhamentos. Nos anos 80, o namoro começou com um acordo nuclear, usado até mesmo pela ONU para mostrar ao mundo como dois países podem superar suas diferenças.

Havia um sentido ainda maior. Juntos, a ideia é de que teríamos condições de frear investidas estrangeiras contra nossas respectivas soberanias, palavra repetida de forma constante dentro do atual Itamaraty.

Ao construir um projeto regional, o Brasil estava ampliando sua influência política e diplomática na região. Em 30 anos, as repercussões de tal estratégia foram muito além do comércio.

Agora, um rompimento seria uma comprovação de que a prioridade passará a ser a relação privilegiada com os EUA. Em março, o governo já anunciou uma cota para o trigo americano, num gesto que deixou nuestros vecinos incomodados.

Na América do Sul, o divórcio no Mercosul ainda poderia afastar ainda mais o país do debate regional, com impactos reais para a capacidade do Itamaraty em participar de decisões do continente.

Abandonar o Mercosul, portanto, não seria uma questão de tarifas. Mas, acima de tudo, uma mudança profunda no eixo geopolítico do país.

Diplomatas lembram que, ao longo de décadas, sempre que um governo brasileiro mergulhou numa aliança incondicional com a Casa Branca, não levou muito tempo para se frustrar. O regime militar, alvo da admiração do presidente, logo descobriu que o alinhamento automático que ensaiou nos primeiros anos do Golpe de 1964 pouca vantagem trouxeram ao país.

Opções de política externa precisam sempre ser consideradas. Na diplomacia, nada é perpétuo. Mas jamais essa avaliação pode ter a ideologia como norte. O escritor E. O. Wilson já alertou que a ideologia política corrompe a mente e a ciência. E, eu completaria: distorce os interesses nacionais quando aplicada à política externa.

Dominado por iniciativas que fazem mais sentido em uma guerra cultural que na real busca por soberania, um desmonte do Mercosul só teria sentido hoje como parte de um reposicionamento ideológico do país no mundo, sem necessariamente um base nas reais necessidades do país.