Coronavírus: Após censurar médico, China é elogiada por dar tempo ao mundo
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Resumo da notícia
- China virou alvo de críticas após comentário de Eduardo Bolsonaro
- País foi primeiro foco de coronavírus no mundo, e tentou abafar a crise
- Médico chinês foi censurado por alertar sobre o vírus na internet
- Reação do país, contudo, é elogiada por ter contido cenário que poderia piorar
Nos últimos dias, circula pelas redes sociais bolsonaristas histórias sobre como um médico chinês se transformou em herói. A história, em grande parte, é real. A repressão em Pequim existe, assim como a censura.
A ofensiva contra Pequim não para nas redes sociais de anônimos, apoiadores de governos de direita ou robôs orientados a espalhar teorias da conspiração.
Nos EUA, Donald Trump rompeu todos os bons costumes da diplomacia para chamar o coronavírus de "vírus chinês". No Brasil, Eduardo Bolsonaro abriu uma crise diplomática ao culpar Pequim pelo caos.
Não faltaram meios aliados ao governo de Jair Bolsonaro nesse esforço. Vários apontaram, sempre sem provas, que Pequim seria a grande beneficiária da pandemia, já que permitiria destruir a economia no Ocidente e fortalecer suas empresas nacionais. A insinuação é de que o vírus foi um plano chinês.
A China, porém, também tentou transferir a aparição do vírus aos americanos. Na semana passada, um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Zhao Lijian, sugeriu que o "paciente zero" da pandemia pode ter vindo dos Estados Unidos.
Vilã para uns, a China é, ainda assim, avaliada por uma parcela importante dos cientistas como tendo sido fundamental para impedir que a crise não fosse ainda maior.
Para especialistas da OMS e uma parcela dos políticos, foi o mesmo regime comunista chinês que, por suas medidas drásticas, presenteou o planeta com o tempo necessário para que o restante dos governos pudessem se preparar.
O problema: grande parte do mundo não usou o tempo, preferindo chamar o caso de "fantasia" ou "histeria", como fez o presidente Bolsonaro.
Médico fez alerta e foi silenciado pelo regime
No caso da rede bolsonarista, o centro das atenções é o médico Li Wenliang, de 34 anos. Em janeiro, já doente, ele revelou que passou a ser alvo da polícia, que o acusou de espalhar "informações falsas". Seu crime: informar nas redes sociais sobre a existência de uma nova doença.
Sua mensagem foi identificada pelos censores da web na China, ele foi denunciado e acabou sendo obrigado a permanecer em silêncio, sob o risco de ser levado à Justiça por promover "distúrbios graves à ordem social".
Tudo o que ele queria era apenas alertar às autoridades sobre a existência do que seria o COVID-19. Semanas depois, contaminado, ele não sobreviveria.
A situação de Li reabriu o debate sobre a censura no país e fez despertar os temores de que os mesmos erros registrados em 2003 para lidar com a SARS voltassem a ocorrer. Naquele momento, o governo impediu a publicação de dados sobre a doença, o que acabou levando a um número inédito de mortes.
Morte de Li gerou comoção na China
Nas redes sociais, a morte do médico em 2020 foi recebida com protestos por parte dos chineses, que exigem saber a verdade sobre o que está ocorrendo no país. Mas, imediatamente, hashtags que cobravam transparência por parte do governo foram bloqueadas pelas autoridades.
Desta vez, diante da pressão, uma parcela da máquina do Estado chinês acenou para um reconhecimento de que errou. O Supremo Tribunal da China indicou, há poucos dias, que a polícia não deveria ter censurado o médico.
Nesta semana, uma comissão de disciplina concluiu que a polícia de Wuhan errou ao censurar o médico e quer que os responsáveis sejam punidos por tal gesto. A entidade ainda reabilita o médico.
Para muitos na China, o gesto visa apenas a pacificar os ânimos dos críticos ao governo. Em jornais asiáticos, investigações apontam que o "paciente zero" do coronavírus poderia ter sido já identificado em 17 de novembro de 2019, mais de um mês antes do primeiro registro feito pela China na OMS.
Matérias retiradas do ar
Mas, diante da crise, o que vem imperando na luta contra o vírus é a censura. Uma revista chinesa que publicou uma matéria sobre como nem todos os casos estavam sendo contabilizados teve sua matéria retirada do ar. Não por acaso, a reunião do Comitê do Partido Comunista, órgão máximo de poder na China, foi concluída com uma decisão clara: "fortalecer o controle sobre a mídia e internet", como forma de lidar com o vírus.
Em parte, a medida tinha como objetivo lutar contra a disseminação de fakenews sobre o vírus. Mas entidades de direitos humanos alertaram que a iniciativa ia além e passou a ser usada pelo governo para justificar o fechamento de contas de usuários e sites.
Um dia depois, a Administração da China para o Ciberespaço declarou que criou um serviço de monitoramento sobre todos os serviços de informação e provedores. A ordem para todos os sites e operadoras é para que "criem um bom ambiente na internet para vencer a batalha contra a epidemia".
Censura na internet é rotineira na China
Para a parcela que acredita que exista um complô em relação à doença, a história não pode ser contada sem que seja colocada num contexto maior: a repressão.
O que fez o agente da web que identificou a mensagem do médico sobre o vírus não foi nada mais do que a nova rotina na China, já existente há alguns anos.
Assim como o médico foi censurado, centenas de outros usuários das redes sociais são punidos quando denunciam que não receberam um tratamento médico, quando tiveram de pagar propinas a um funcionário público chinês ou simplesmente quando presenciam uma ilegalidade do regime.
Destinando bilhões de dólares a cada ano para controlar a web, Pequim passou a patrulhar o que seus cidadãos colocam no ar, da mesma forma que patrulham as ruas.
No caso da nova doença, a ofensiva de censura nos dias que se seguiram não ocorria por acaso. Para o presidente chinês Xi Jinping, o surto ocorre em um momento crítico: a economia do país tem a menor taxa de expansão em anos, a crise em Hong Kong se aprofunda e Pequim também viu a vitória de candidatos independentistas em Taiwan.
A ordem, portanto, é a de conter não apenas o vírus, mas também a narrativa de que a China poderia não dar conta da crise sanitária.
Governo chinês tenta controlar crises
Entidades como a Human Rights Watch e mesmo o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos alertaram que populações precisam ter "direito à informação" no caso do atual surto.
Para Jiping, qualquer ação internacional poderia ter um impacto político amplo. Neste sentido, a Organização Mundial da Saúde foi pressionada a não declarar uma emergência global.
Ao mesmo tempo em que isso era feito, Pequim dava uma demonstração ao mundo de como construir um hospital em apenas dez dias, num gesto divulgado insistentemente nas redes sociais e imprensa internacional. A ordem era a de reverter a narrativa.
Se a China censurou e de fato adotou a repressão, resumir o coronavírus a esses episódios não permite entender a história da doença e de seu combate. Na medida em que a doença ganhava força, a declaração de uma emergência global era inevitável.
Os prejuízos temidos pela China
Para Pequim, tal declaração poderia significar o corte de relações comerciais com o país e uma desestabilização política ameaçadora num país com mais de 1 bilhão de pessoas. A ordem precisava ser garantida e o recado foi passado à sede da OMS, em Genebra.
De seu lado, a agência insistia que precisava de acesso aos dados chineses e ao país para entender a dimensão da ameaça ao planeta.
Com sua equipe de alto escalão, a OMS desembarcou na China para negociar com a presidência. O recado levado pela entidade era de que a emergência precisava ser declarada. Mas a agência garantiria que a mensagem ao mundo não seria de incriminação da China e nem de seus líderes.
A OMS também se comprometeu a pedir que governos estrangeiros não impusessem qualquer tipo de barreiras comerciais contra os produtos chineses e que não houvesse uma ação coordenada no Ocidente para denominar a nova epidemia como "vírus chinês".
China deu tempo para mundo se preparar
Num certo momento, o chefe de operações da OMS, Michael Ryan, declarou: "se eu ficar doente, gostaria de ficar doente na China". Naquele momento, sua frase foi vista como um exagero. Hoje, diante do acúmulo de mortes na Europa, das imagens de caixões enfileirados na Itália e da recessão mundial, a frase ganha um novo significado.
Em troca dos gestos feitos, a OMS recebeu a garantia de que a China atuaria para frear o vírus. E assim ocorreu. Surpreendendo o mundo, Pequim isolou milhões de pessoas, colocou seu exército na rua e implementou medidas drásticas.
Para a OMS, o que ocorria com o confinamento dos cidadãos de Wuhan e de outras cidades era traduzido em um tempo precioso para que o mundo pudesse se preparar. "A quarentena na China deu ao mundo um mês", explicou um especialista da agência, na condição de anonimato.
"Monumental" era a palavra mais usada na OMS para descrever as ações de Pequim.
Enquanto a expansão do vírus era desacelerada, trabalhos começaram nos quatro cantos do mundo para identificar a doença, ampliar a produção de kits, testes, máscaras e reunir milhões de dólares para um combate que seria global.
Em Genebra, não eram poucos os especialistas que acreditavam que a chegada do vírus a outros continentes ocorreria mais cedo ou mais tarde. Mas a ideia era de que, quanto mais tarde esse desembarque fosse registrado, melhor preparado estaria o mundo.
"A China merece gratidão e respeito", declarou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS. "Não sei se conseguiremos dar a mesma resposta que a China deu ao vírus", completou Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, que lidera um esforço global para identificar ameaças à saúde.
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