Jamil Chade

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Reportagem

Repressão na Venezuela desafia estratégia de Lula em reunião com Maduro

Decisões do governo de Nicolás Maduro desafiam a estratégia que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva adotou para normalizar a relação com a Venezuela e reduzir a tensão regional. Nesta sexta-feira, os dois presidentes devem se reunir na cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, em São Vicente e Granadinas.

O encontro ainda não foi oficialmente anunciado. Mas tanto o Itamaraty como o Palácio do Planalto indicam que a probabilidade de que a reunião ocorra é alta e que os dois governos trabalham no sentido de que Lula e Maduro conversem.

As medidas do presidente venezuelano também colocam em questão os acordos fechados em outubro de 2023 entre Caracas e a administração de Joe Biden, em Barbados.

Depois de um ano de conversas secretas, os dois governos selaram um entendimento de que haveria uma suspensão das sanções que colocaram a economia da Venezuela de joelhos. Em troca, haveria uma garantia por parte de Maduro de que as eleições de 2024 serão livres e justas e que prisioneiros políticos serão libertados.

Caracas ainda aceitaria receber voos dos EUA, com venezuelanos que seriam deportados de volta ao país após entrar de forma irregular em território americano.

Biden, na esperança de reverter as políticas de Donald Trump, ainda chancelou a volta das exportações de minérios e permitiu que um aliado de Maduro, Alex Saab, deixasse a prisão nos EUA, onde ele era acusado de lavagem de dinheiro.

Mas, nas últimas semanas, as medidas adotadas pelo líder venezuelano vão no sentido contrário ao compromisso assumido, levantando suspeitas entre a oposição em Caracas de que Maduro tentaria apenas ganhar tempo com as promessas e sinalizações feitas a Biden, Lula e a outros parceiros.

EUA alertaram Lula

A situação da Venezuela entrou na agenda do encontro do secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, quando ele esteve no Brasil, na semana passada. Em conversa com o presidente Lula, ele deixou claro que o governo norte-americano está preocupado com as medidas adotadas por Maduro nos últimos meses.

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Sanções contra o setor de minérios voltaram a ser impostas e, se o presidente venezuelano não mudar sua rota, os embargos no setor do petróleo voltariam a entrar em vigor em abril. Caracas acusou Biden de "chantagem", e a relação azedou.

Blinken e Lula chegaram a um consenso de que o processo eleitoral precisa ser garantido e que os acordos que foram estabelecidos entre a Venezuela e Biden precisam ser salvos.

O desafio de Lula

Agora, o brasileiro tem a missão de convencer Maduro a respeitar seus compromissos de garantir eleições limpas e transparentes e ainda permitir que observadores internacionais possam acompanhar o processo.

No Brasil, fontes do Palácio do Planalto indicaram que um dos objetivos da diplomacia brasileira agora é o de salvar esse acordo, além de evitar um conflito armado entre a Venezuela e a Guiana. No encontro que pode ocorrer nesta sexta-feira, Lula deve insistir com Maduro sobre a necessidade de não romper o plano.

O governo brasileiro também interpretou a conversa de Blinken como uma sinalização de que os EUA estão mais preocupados com o processo eleitoral, e não especificamente com a desqualificação da líder da oposição, Maria Corina Machado, do processo eleitoral.

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54 mil venezuelanos cruzaram fronteira com EUA em um mês

Para o Palácio do Planalto, a pressão para que haja um acordo com a Venezuela é alta, assim como os ganhos. Uma estabilização do país sul-americano frearia a onda migratória em direção aos EUA e ainda permitiria um abastecimento de combustível no mercado internacional.

Em setembro de 2023, 54 mil venezuelanos cruzaram a fronteira com os EUA. Depois do acordo, que prevê deportações, o número caiu pela metade.

Não por acaso, o governo norte-americano vem insistindo que, apesar da preocupação e do restabelecimento de algumas sanções, a Casa Branca está comprometida em manter sua parte do pacto.

Aposta no diálogo

Assim que assumiu a presidência, em 2023, Lula decidiu que o isolamento da Venezuela não estava dando resultados e não era a melhor tática. Documentos produzidos pela equipe de transição, ainda em 2022, apontaram que a estratégia de Jair Bolsonaro com Caracas permitiu que o vizinho brasileiro se transformasse em um campo de batalha de influência de russos, chineses e norte-americanos.

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A proposta, portanto, foi a de promover um diálogo. Logo no início do mandato de Lula, o assessor especial do Planalto, Celso Amorim, viajou para Caracas e se reuniu tanto com Maduro como com a oposição.

Para completar, o Brasil voltou a abrir sua embaixada na Venezuela e, na semana passada, a representação passou a ter uma embaixadora.

Na avaliação do Brasil, a guerra na Ucrânia ainda abria as possibilidades para que a Venezuela pudesse voltar a exportar petróleo, diante da procura do Ocidente por um substituto do combustível russo. Sinalizações por parte dos EUA e da Europa indicavam que uma nova fase das relações com Maduro poderia ser estabelecida.

Medidas contra a oposição são denunciadas pela ONU

Mas o processo que havia sido iniciado passou a ser questionado nas últimas semanas. A Missão Internacional Independente sobre a Venezuela, criada pela ONU, expressou "profunda preocupação" com o destino de uma ativista de direitos humanos detida pelas autoridades venezuelanas e pediu ao governo Maduro para "pôr fim a uma onda de repressão contra opositores que está se intensificando em todo o país".

O alerta da missão foi dado depois que as forças de segurança venezuelanas detiveram Rocío San Miguel, presidente da organização Control Ciudadano, quando ela tentava embarcar em um voo com sua filha no Aeroporto Internacional Simón Bolívar.

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O procurador-geral do país acusou San Miguel de participar de uma tentativa de conspiração contra Maduro e outras autoridades de alto escalão, bem como de envolvimento em ataques contra unidades militares e outras instituições em todo o país.

"Não se trata de incidentes isolados, mas de uma série de eventos que parecem fazer parte de um plano coordenado para silenciar críticos e oponentes", disse Marta Valiñas, presidente da missão criada pelo Conselho da ONU.

Valiñas cobrou o governo a "abster-se de usar medidas repressivas contrárias às suas obrigações internacionais de direitos humanos e direito penal internacional."

O UOL apurou que a equipe de investigadores tem demonstrado preocupação com vários atos recentes que violam o direito internacional, incluindo detenções e ameaças de detenção de membros da Comissão Nacional de Primárias, bem como de militantes do partido político Vente Venezuela, vencedor das eleições primárias da oposição, e a desqualificação de cargos públicos de líderes políticos, incluindo a líder da oposição María Corina Machado.

"O Estado venezuelano violou os direitos humanos de dezenas de pessoas ao investigar supostos grupos conspiratórios, privando os investigados, detidos e processados dos direitos mais elementares", disse Francisco Cox, outro membro da missão da ONU. "Embora o Estado tenha o direito de investigar, isso deve ser feito com total respeito aos direitos humanos e sem cometer crimes internacionais", disse.

Expulsão da ONU de Caracas

A crise ainda se agravou depois que o governo Maduro, no dia 15 de fevereiro, deu 72 horas para que os treze funcionários da ONU em Caracas deixassem o país. O argumento foi de que o escritório aberto pelas Nações Unidas seria de "local privado" para os "interesses de golpistas".

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O que o escritório fazia era escutar todas as partes, inclusive os atores vítimas da repressão de Maduro.

No mesmo momento em que a ONU era expulsa, um informe era produzido pelo relator da entidade sobre o direito à alimentação, Michael Fakhri, apontando que quase 82% dos venezuelanos vivem na pobreza e que 53% estão em pobreza extrema.

Nesta semana, em Genebra, o chanceler da Venezuela, Yvan Gil, esteve com a cúpula da entidade e afirmou estar disposto a dialogar. Mas alertou que a ONU deve se "comprometer a não cair na politização e trabalhar com as instituições venezuelanas respeitando estritamente nossa soberania".

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