Em cartas sigilosas, relatores da ONU acusam Venezuela de tortura e mortes
Relatores da ONU acusaram o governo de Nicolás Maduro de abusos de direitos humanos, repressão e de abalar a independência do Judiciário. Cartas sigilosas obtidas pelo UOL revelam que, enquanto as autoridades em Caracas prometiam abrir espaço para eleições livres, a realidade nem sempre refletia o que o discurso oficial indicava.
Nesta semana, a comissão criada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, e que investiga a situação na Venezuela, apresentará um novo informe, depois de ter já alertado, em 2023, que Maduro incrementou a repressão. O governo venezuelano também expulsou do país os funcionários da ONU.
Mas as denúncias feitas pelos órgãos internacionais contra o governo venezuelano vão muito além dos informes públicos.
O UOL obteve com exclusividade sete cartas que, ao longo dos últimos dois anos, foram enviadas de forma confidencial por relatores da ONU para o governo de Nicolás Maduro. Os documentos revelam que a falta de transparência e de participação da oposição nas eleições são apenas parte de uma crise maior de violações e abusos de direitos humanos.
As diferentes comunicações apontaram para uma redução do espaço para a sociedade civil, mudanças e abalo na independência do sistema judiciário, desaparecimento e morte de ativistas de direitos humanos e ameaças contra pessoas que tenham contribuído com as investigações conduzidas pela ONU.
Em 21 de setembro de 2023, por exemplo, quatro relatores da ONU se uniram para cobrar de Maduro explicações sobre a proposta de criação de uma nova lei que iria ampliar a repressão e o controle sobre a sociedade civil. O objetivo oficial da nova regulamentação de funcionamento das ONGs era o de "resguardar a soberania" diante da presença de entidades estrangeiras e lutar contra o "terrorismo".
Mas, para os relatores internacionais, o que foi proposto foi a criação de regras, exigências e condições que acabam impedindo o funcionamento de entidades da sociedade civil e a organização de defensores de direitos humanos no país.
"A proteção do direito à liberdade de associação é fundamental para dar uma resposta eficaz aos múltiplos desafios que a Venezuela enfrenta, incluindo o direito à liberdade de associação", destacou o documento, assinado por Clement Nyaletsossi Voule, relator especial sobre os direitos à liberdade de reunião pacífica e de associação, Irene Khan, relatora especial sobre a promoção e a proteção do direito à liberdade de opinião e de expressão, Mary Lawlor relatora especial sobre a situação dos defensores dos direitos humanos, e Fionnuala Ní Aoláin, relatora especial sobre a promoção e a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais na luta contra o terrorismo.
Na carta, os especialistas escreveram: "é imperativo que o Governo de Vossa Excelência (Maduro) procure formas de racionalizar o quadro regulamentar aplicável à sociedade civil, em conformidade com as normas existentes em matéria de direitos humanos, assegurando que o cumprimento dos deveres administrativos não se torne um fardo impossível de gerir para estas organizações ou um desincentivo ao exercício dos direitos de associação, liberdade de expressão e defesa dos direitos humanos".
Segundo eles, medidas para combater o financiamento do terrorismo devem ser "estritamente adaptadas, necessárias e proporcionais à realidade empírica do risco distinto identificado" e não podem ser usadas como instrumentos para atingir outras metas.
"Gostaríamos de recordar ao Governo de Vossa Excelência que os Estados têm a responsabilidade e o dever primordial de proteger, promover e cumprir todos os direitos humanos e liberdades fundamentais", disseram. "Por esta razão, instamos o Governo de Vossa Excelência a reexaminar o regulamento relativo ao registro, controle e financiamento das organizações não governamentais", pediram.
O governo Maduro não respondeu.
No dia 11 de agosto de 2023, outra carta assinada por três relatores cobraram explicações do governo da Venezuela sobre "o alegado desaparecimento forçado e a morte de Douglas Efrén Escalante Medina em 28 de novembro de 2016; e as mortes sob custódia do Estado de Víctor Eduardo Colina Maestre em 17 de abril de 2019, de Hebert Giovanny Escobar Gandica em 25 de setembro de 2019, e do Sr. Yohani Manuel Sarlangue Flangue, em 8 de janeiro de 2021, que teriam morrido em resultado de tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes alegadamente perpetrados por funcionários do Corpo de Investigações Civis, Criminais e Criminalísticas, da Guarda Nacional Bolivariana e da Direção do Serviço de Investigação Criminal".
A carta se estende citando preocupação com "a aparente impunidade que parece beneficiar os alegados autores dos casos documentados, bem como a falta de cuidados médicos atempados e adequados que o estado grave das alegadas vítimas merecia, o que parece ter acabado por causar a sua morte em alguns casos". A carta é assinada por Morris Tidball-Binz, relator Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Matthew Gillett, Vice-Presidente do Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária, e Aua Baldé, presidente do Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários.
"Continuamos igualmente preocupados com os repetidos relatos de extorsão e ameaças, incluindo ameaças de morte, contra pessoas associadas às pessoas detidas e falecidas. Sublinhamos que o Estado tem a obrigação de agir prontamente e com maior diligência para proteger a vida das pessoas que foram objeto de ameaças, incluindo ameaças de morte", completam.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberO governo Maduro também não respondeu.
Em 8 de fevereiro de 2023, nova queixa dos relatores da ONU foi direcionada à situação da população trabalhando na Zona Estratégica de Desenvolvimento Nacional Arco Minero del Orinoco.
Ainda em 4 de julho de 2022, uma outra carta dos relatores da ONU apontava para as supostas ameaças, assédios, vigilância e detenções arbitrárias contra Alcides Bracho, Emilio Negrín, Gabriel Blanco, Néstor Astudillo, Alonso Meléndez e Reynaldo Cortés, "que supostamente foram submetidos a essas violações por causa de seu trabalho na promoção e proteção dos direitos humanos, particularmente na defesa dos direitos trabalhistas e sociais, e de sua atividade sindical, ou por causa de sua participação em partidos políticos de oposição ao governo".
Os relatores da ONU alertaram o governo Maduro sobre as violações que estariam sendo cometidas e pediram explicações. Nenhuma resposta foi dada.
Antes, em 30 de maio, o relator Diego Garcia, sobre independência do Judiciário, também apresentou uma queixa ao governo Maduro, questionando a reforma da Suprema Corte de Justiça (TSJ), com novos membros. "Essa reforma conteria disposições inconstitucionais e estaria em desacordo com as normas e padrões internacionais dos quais a Venezuela faz parte, afetando a independência e a imparcialidade do TSJ em favor do poder executivo", alertou o relator.
Caracas tampouco deu uma resposta para o relator da ONU.
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