Jamil Chade

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Reportagem

Samba desembarca na ONU com mensagem de luta e hino contra o racismo

Nesta terça-feira (16), a cantora Teresa Cristina assumiu o palco que tradicionalmente é de diplomatas e negociadores para abrir o Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes na ONU, em Genebra. A delegação do governo brasileiro é liderada pela ministra Anielle Franco e composta ainda por artistas que transformaram uma das alas da ONU num local de reflexão sobre a escravidão e suas consequências.

Mas o evento internacional foi aberto com samba e sua mensagem de transformação social e de reafirmação da identidade do povo negro, levantando embaixadores, negociadores e ativistas. Referência na luta pela inclusão das mulheres na música, Teresa Cristina escolheu canções com fortes mensagens para sua participação, apoiada pelo Ministério da Cultura.

A primeira foi "Zé do Caroço", composição de Leci Brandão de 1978 que conta a história de um comunicador negro que foi fundamental na transmissão de notícias em sua favela e se tornou símbolo de resistência a partir dessa música. "Essa música é um chamado", disse a cantora, que destacou ainda o papel político de Leci Brandão.

A outra -"Canto das Três Raças" - é uma espécie de hino e reconhecida como um dos símbolos de luta e resistência da população negra brasileira.

Mas, numa de suas partes, a letra servia como um alerta na ONU, que atravessa uma crise existencial diante dos conflitos pelo mundo.

E de guerra em paz, de paz em guerra, todo o povo dessa terra quando pode cantar, canta de dor.

Teresa Cristina admitiu que não havia feito a escolha da canção com base nesse trecho. Mas, no momento de testar o microfone e som da sala da ONU, a letra surpreendeu a ela mesma. "A música foi batendo na minha cara", disse.

Originalmente, sua escolha pela canção havia sido por conta de trechos como o que alerta que "ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil". "Um dos problemas é negar que existe uma dor e uma ferida que está aberta", disse a cantora.

Para ela, trazer a música para a ONU não é apenas mais uma apresentação. "Eu não sou só eu. Meu corpo é um corpo que se repete. Existem muitas Teresas no Brasil e acho importante chegar na ONU para cantar. Eu quero que outras Teresas venham, que isso se repita", disse.

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A cantora considera que trazer o samba para a ONU é "revolucionário". "Fico muito emocionada. Não foi fácil chegar aqui. Sou mãe solteira, sustento minha mãe e minha filha. Meu dinheiro é suado e contado. Chegar aqui é uma vitória muito grande. Meu corpo é um corpo politico e ele deveria estar aqui. Espero que isso aconteça outras vezes e que possa abrir portas a outras mulheres negras", disse. "É uma vitória para mim, mas também para pessoas como eu, que são muitas", insistiu.

Ela, porém, não hesitou em fazer um alerta sobre a situação brasileira. "Estou cansada de ver gente indo longe e, depois, esquecendo quem ficou. Chegam lá e dizem: a favela venceu. Não venceu não, continua passando fome", alertou.

Aposta no letramento racial

A artista também lamentou como, no Brasil, as dores das camadas marginalizadas são colocadas "para baixo do tapete". Ela tem sua receita sobre como lidar com essa realidade. "Precisamos falar sobre o letramento racial. Muitas pessoas reproduzem o racismo, por não ter tido um letramento racial em casa. Eu não tive", disse.

A cantora destaca como mesmo aqueles negros que conseguem ganhar muito dinheiro acabam repetindo "discursos tristes".

"Não sei se eles têm tanta culpa disso. O letramento racial é lento", disse. Ela lembra como famílias acabam privilegiando a luta por ter o que comer e sobreviver. Mas ela sugere outro foco. "Precisamos nos perguntar: será que a falta de comida tem uma relação com a cor da minha pele?. Isso é algo que precisa ser construído", defendeu.

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"Falamos muito sobre o Holocausto, sobre os horrores contra o povo judeu. Mas eles tiveram reparação econômica e isso é muito bom. O povo negro ele ganhou uma liberdade que era: suma, não quero mais te ver", disse. "Ainda estamos lutando para ter cotas", lamentou.

'Oceano desromantizado' e Brasil assume perfil afro em política externa

A presença de Teresa Cristina faz parte de uma ofensiva do governo brasileiro para promover um reposicionamento de seu perfil internacional e assumir a identidade afro como parte da cultura, estratégia diplomática e de políticas sociais.

Além da música, o governo e entidades levaram para Genebra 22 artistas para a exposição "Atlântico Vermelho". "Acho que é a primeira vez que falamos do oceano desromantizado e visto como fim de ciclo para muita gente", constatou a artista.

Anielle Franco, ao abrir a exposição, destacou a necessidade de que lugares como a ONU sejam "ressignificados".

Além do Ministério da Cultura, o evento está sendo organizado pelo Instituto Luiz Gama, Paramar e pelo Instituto Guimarães Rosa - unidade do Ministério das Relações Exteriores responsável pela diplomacia cultural brasileira. No total, a exposição conta com 60 obras de artistas afrodescendentes brasileiros, entre eles Rosana Paulino, Antônio Obá, Maré de Matos, José Eduardo e Márvilla Araújo.

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A iniciativa do governo vem num momento em que a sociedade civil e ativistas questionam a lentidão por parte da administração em implementar a mudança radical nas políticas sociais, depois de quatro anos de um desmonte da pauta de direitos humanos por parte do governo de Jair Bolsonaro.

Ao lado dos EUA, o governo brasileiro assumirá a liderança dos debates e das negociações para a criação de uma Declaração de Direitos Humanos dos Afrodescendentes, que terá o peso de um tratado internacional.

Neste contexto - e como base da negociação - o evento vai debater o racismo ambiental, justiça reparatória, discriminação e desigualdade racial, xenofobia, educação e letramento racial, migração e refúgio de afrodescendentes e representatividade.

Além da participação do governo, ONGs e ativistas como Sueli Carneiro vão denunciar ao longo da semana o racismo, violência policial e desafios enfrentados pela população negra no Brasil. O encontro coincide com a visita da relatora da ONU para a defesa de ativistas, Mary Lawlor, e uma onda de violência contra ambientalistas e líderes comunitários.

O reposicionamento do governo não é apenas simbólico. No aspecto diplomático, a iniciativa interessa ao governo que tenta, depois de seis anos de ausência na África, retomar seu protagonismo no continente e ampliar as alianças. Isso inclui um reforço da cooperação com os países da CPLP e Caribe. Dentro do Itamaraty, porém, vozes críticas alertam que, apesar das boas intenções e de uma mudança no diálogo, a estratégia diplomática para a África é ainda uma incógnita.

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