Jamil Chade

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Reportagem

'Mulher que mora na rua precisa escolher seu agressor', diz vítima à ONU

O Comitê contra a Discriminação contra a Mulher (CEDAW) recebeu nesta semana denúncias sobre a situação das mulheres em situação de rua no Brasil. O assunto será examinado dentro do processo do órgão que fará uma sabatina com o Brasil e apresentará recomendações ao governo sobre os direitos das mulheres no país.

Num informe apresentado ao Comitê, a Comissão Arns, em parceria com o Movimento Nacional População de Rua, o Movimento Nacional de Luta em Defesa da População em Situação de Rua, e o Movimento Estadual da População em Situação de Rua em São Paulo, destacaram a violência e o descumprimento do estado brasileiro dos compromissos internacionais que assumiu diante desse segmento de mulheres.

No documento, uma das pessoas entrevistadas afirma:

"A mulher que mora na rua precisa escolher seu estuprador, seu agressor, que vai defendê-la de outros agressores e estupradores".

Embora o Brasil tenha aderido ao tratado que estabelece direitos específicos sobre as mulheres em 2002, o relatório aponta a violação de diversos compromissos, principalmente com o aumento do número de mulheres em situação de rua, vulneráveis à discriminação e à violência, após a pandemia de covid-19.

Segundo a socióloga Maria Victoria Benevides, presidente da Comissão Arns, a apresentação do relatório abre um importante canal de diálogo para discutir o fenômeno a partir de outras perspectivas. "A causa dos movimentos de população de rua no Brasil chega à ONU em um momento crucial, especialmente no caso das mulheres, que são as mais prejudicadas e violentadas nessa hostil realidade de não ter uma casa", afirma.

Para ela, a falta de dados coordenados e específicos, de fontes oficiais, dificulta o diagnóstico da real extensão desse problema, que, partindo da violação ao direito à moradia, "coloca em xeque todos os direitos da pessoa humana, como acesso à saúde, à justiça e à dignidade".

"No caso das mulheres, o relatório oferece um vislumbre da realidade brutal nas ruas: apesar de representarem entre 13% e 15% do total da população de rua no Brasil, elas são as vítimas de 40% dos casos graves de violência perpetrados contra esse contingente - que, como alerta o documento, corre o risco de apresentar um grau "nada desprezível" de subnotificação" afirma a Comissão Arns.

A entidade apresentou ainda recomendações, começando com um censo nacional efetivo da população em situação de rua, com dados desagregados em gênero e raça e metodologia testada e aplicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Outras ações recomendadas incluem instrumentos, campanhas, políticas públicas e planos voltados para a restauração da saúde integral e do acesso à justiça, além da reparação de direitos violados em vista da negligência histórica do Estado. As propostas envolvem um trabalho conjunto com o Ministério da Saúde, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o Ministério da Mulher e a Comissão Nacional de Justiça.

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Paulo Lugon Arantes, assessor internacional da Comissão Arns, explica que o relatório conjunto apresentado ao Comitê demonstra de que modo, nesse território, vários artigos da Convenção são violados.

Segundo o especialista, a primeira constatação do informe é de que as mulheres sofreram um impacto negativo maior que os homens. "Contudo, após as medidas de reestruturação econômica, mais acesso a seguro social e direitos, o número desproporcional de mulheres nesse contexto persiste", diz.

Segunda constatação: em um movimento de reestruturação econômica e de direitos, as mulheres se recuperam desses danos (a chamada resiliência) em uma velocidade menor que os homens em situações equiparáveis, permanecendo invisíveis em políticas habitacionais, de capacitação, de segurança social e de participação política.

Lugon destaca também que "a saúde reprodutiva da mulher em contexto de rua, no âmbito do Artigo 12 da CEDAW, e do pouco lembrado caso Alyne da Silva Pimentel (2011), é amplamente negligenciada, como o desconhecimento das etapas e especificidades do ciclo reprodutivo no contexto de rua, acesso aos contraceptivos, atenção ao pré-natal e parto, amamentação, atendimento ao aborto legal, dignidade menstrual, e destituição precoce de bebês frequentemente sem o consentimento das mães".

O relatório apresenta condições calamitosas de violência física e moral contra as mulheres em contexto de rua. "São relatados resultados de pesquisa no território, como cicatrizes de afundamento de crânio por pauladas de dois homens; 18 pontos no nariz resultado da mordida de um outro homem que não aceitou recusa a uma relação sexual; cicatrizes de queimadura de cigarro e facadas e escoriações por ter sido arrastada no asfalto pelo ex-companheiro", explica o especialista.

Mulheres ouvidas pela Comissão e parceiras contaram que, ao procurar uma Delegacia de Mulher para registar um incidente de violência, são informadas de que nada pode ser feito, pois não há meios de se instaurar uma medida protetiva, uma vez que essas mulheres não possuem endereço fixo.

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Lugon explica que o relatório apresentado é parte do processo de revisão periódica do Brasil pelo Comitê, que monitora o cumprimento, pelo país, das obrigações contraídas ao ratificar a Convenção CEDAW, em 2002, uma década após a ratificação dos dois Pactos da ONU.

"As recomendações que serão emitidas pelo Comitê, após o diálogo de revisão com a delegação estatal, devem ser lidas em conjunto com a própria Convenção, que é obrigatória em toda jurisdição nacional", completa.

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