Governo Milei é acusado de 'glorificar' criminosos da ditadura argentina
O governo de Javier Milei é acusado de "glorificar" criminosos de ditadura militar da Argentina, responsável por delitos contra a humanidade e milhares de mortos. Numa carta sigilosa enviada por relatores das Nações Unidas às autoridades de Buenos Aires, a administração é denunciada e alertada sobre o impacto de suas decisões diante dos compromissos internacionais do país.
Desde sua redemocratização, a Argentina passou a ser um dos exemplos no mundo de punição contra militares e ditadores, responsáveis por uma das piores repressões do século 20 na América Latina.
Agora, porém, a carta obtida com exclusividade pelo UOL e datada de 2 de maio de 2024 revela um mal-estar. Para os relatores, há uma "glorificação dos condenados por crimes contra a humanidade" e uma ofensiva contra a possibilidade de que arquivos militares sejam usados em denúncias.
O documento é assinado por Bernard Duhaime, Relator Especial sobre a Promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de não repetição, Aua Baldé, presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, e Morris Tidball-Binz, relator especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias.
De acordo com a carta, em fevereiro de 2024, o coronel Horacio Losito, que foi condenado à prisão perpétua e a duas sentenças de 25 anos de prisão por crimes contra a humanidade, foi recebido com honras no Regimento de Infantaria de Monte 30, em Apóstoles, na província de Misiones.
"Expressamos séria preocupação com as recentes expressões e atos de glorificação de pessoas condenadas por crimes contra a humanidade", diz a carta. "Isso contraria as obrigações internacionais do Estado argentino em termos de direitos humanos e memória histórica de graves violações de direitos humanos e, em particular, a obrigação de evitar o surgimento de teses revisionistas, relativistas e negacionistas sobre elas, como um elemento essencial da reparação devida às vítimas e das garantias de não repetição da violência passada", alertaram os relatores da ONU.
Segundo eles, "os processos de memória ou outros processos institucionais não podem, em nenhum caso, negar ou tentar diminuir a importância das violações e crimes cometidos que foram estabelecidos por comissões da verdade e processos judiciais, como as condenações proferidas por tribunais nacionais e estrangeiros contra autores de graves violações de direitos humanos durante a ditadura argentina".
"Também nos preocupa que o fato alegado leve à revitimização das vítimas de graves violações de direitos humanos durante esse período", afirmam.
Em resposta, o governo Milei explicou que o ato ao coronel ocorreu por conta de ele ter feito parte das operações militares nas Malvinas e de ter feito a visita para encontrar seu filho, também militar. Mas alegou que um processo de apuração do gesto foi iniciado.
Desmonte de arquivos
Outra denúncia se refere à decisão do Ministério da Defesa sobre o destino dado aos arquivos das Forças Armadas, onde estão informações e relatos sobre graves violações de direitos humanos.
"Em 27 de março de 2024, a Direção Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Defesa anunciou a decisão de demitir dez das treze pessoas que trabalham nas Equipes de Levantamento e Análise do Ministério, encerrar os programas da Direção vinculados aos Arquivos das Forças Armadas; e revogar as resoluções que concedem status permanente às equipes e a resolução que cria e regulamenta o Sistema de Arquivos do Ministério da Defesa", afirma a carta.
"Expressamos grave preocupação com a decisão de demitir dez dos treze trabalhadores das Equipes de Levantamento e Análise do Ministério da Defesa, de encerrar os programas da Direção Nacional de Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário do Ministério vinculados aos arquivos das Forças Armadas e de revogar resoluções", denunciaram os relatores.
"Preocupa-nos que o desmantelamento de equipes e programas responsáveis por investigar e analisar a documentação e os arquivos existentes sobre as ações das Forças Armadas durante a ditadura militar possa violar a obrigação do Estado argentino de investigar e punir tais violações, garantir o acesso à verdade sobre elas e assegurar a preservação e o acesso aos arquivos históricos de tais violações", completaram.
As equipes foram criadas em 2010 e, desde então, vêm realizando o levantamento e a análise da documentação e dos arquivos das Forças Armadas, utilizados na investigação e no esclarecimento das violações de direitos humanos cometidas durante a última ditadura militar na Argentina (1976-1983).
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberMais de 170 relatórios foram produzidos e utilizados em processos judiciais que investigaram essas violações e contribuíram para a verificação da passagem de pessoas detidas e desaparecidas por centros clandestinos de detenção, tortura e extermínio.
"Dadas as características dos arquivos, sua análise é extremamente complexa e exige conhecimento técnico especializado", destaca a carta.
"Em 3 de abril de 2024, foi apresentado um pedido de medida cautelar. Da mesma forma, a Câmara Federal de Cassação Criminal solicitou que os arquivos relacionados aos julgamentos contra a humanidade fossem salvaguardados e pediu respeito ao direito à verdade sobre os crimes de terrorismo de Estado", indicou.
Os relatores cobraram explicações por parte de Milei que, numa carta de resposta, indicou que os cortes ocorreram por conta da "grave crise" econômica que atravessa a Argentina.
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