ONU denuncia violência contra indígenas e cobra demarcação de terras
A situação da população indígenas volta a preocupar a ONU, diante de uma ofensiva da violência e de incidentes de mortes. Em declarações ao UOL, o representante do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos para a América Latina, Jan Jarab, cobrou do governo de Luiz Inácio Lula da Silva uma aceleração do processo de demarcação de terras indígenas.
Nesta semana, enquanto mais um indígena era morto no Mato Grosso do Sul, a entidade se reunia com a Funai e com outros órgãos. Além disso, relatores da ONU se uniram para cobrar do governo respostas diante de uma ofensiva da violência contra os indígenas no Maranhão, Mato Grosso do Sul e Bahia.
As cobranças e alertas ocorrem às vésperas da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para abrir a Assembleia geral da ONU, em Nova York.
Nesta quarta-feira, um indígena Guarani-Kaiowá foi morto com um tiro na cabeça durante confronto com PM na Fazenda Barra, em Antônio João (MS). Neri Guarani Kaiowá tinha 18 anos e seu assassinato ocorreu em um ataque realizado dentro da área de retomada dos indígenas.
"O ataque que aconteceu na noite do dia 17 de setembro, que causou a morte de um jovem indígena, foi o terceiro ataque grave contra povos indígenas no Mato Grosso do Sul no período de menos de um mês. Os ataques anteriores também foram graves, resultando em vários feridos", disse Jarab.
Para ele, a escalada de violência se reflete no número crescente de ataques aos povos indígenas no Brasil contra o povo Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, nas últimas semanas.
"O Alto Comissariado tem motivos para acreditar que esses ataques fazem parte de um fenômeno mais amplo de pressão crescente por parte da agroindústria, das indústrias extrativistas legais e ilegais e de outros atores que têm interesses estritamente econômicos, e de curto prazo, muitas vezes com o apoio de forças políticas poderosas, inclusive no Congresso — pressão sobre o território que está em disputa ou mesmo que já está formalmente homologado e regularizado como território indígena", alertou.
"Pelo que sabemos, o ataque desta quarta-feira ocorreu nesse território já homologado", disse.
Outra preocupação da ONU se refere ao marco temporal. "Estamos preocupados com o fato de que a incerteza contínua sobre o "marco temporal" está aumentando o risco de novos ataques e conflitos — isso cria um incentivo para que os agentes antindígenas retirem à força os povos indígenas dos territórios em disputa a todo custo antes que haja uma decisão final", disse Jarab.
"Nesse sentido, esperamos uma decisão oportuna sobre a constitucionalidade da lei que afirmou a tese do marco temporal, após a importante decisão do STF contra o marco temporal em setembro passado. Compartilhamos a posição das organizações indígenas e pro-indígenas que isso é necessário", explicou.
Demarcações
Ainda assim, o representante da ONU pede para o governo Lula "avançar na demarcação de territórios indígenas que há muito aguardam e que, muitas vezes, não são afetados pela disputa do marco temporal, e a fortalecer suas políticas de proteção aos defensores de direitos humanos, incluindo defensores da terra e do território, e de prevenção de conflitos".
Jarab deixa claro que o apelo é a todo o estado brasileiro. "Os pedidos também vão para o Supremo Tribunal Federal, para que resolva a questão da constitucionalidade da lei do marco temporal — reiterando que, acima de tudo, a tese é contrária aos padrões internacionais de direitos humanos, pois restringe severamente os direitos humanos dos povos indígenas", disse.
Ele ainda pediu ao Ministério Público que garanta uma investigação "rápida, independente e exaustiva" de todos os casos de ataques recentes no Mato Grosso do Sul, inclusive no caso desta quarta-feira e que supostamente envolveu um policial. "Também pedimos ao governo do Mato Grosso do Sul que tome todas as medidas necessárias para garantir a proteção dos direitos humanos de suas populações indígenas", disse.
Carta cobrou governo em julho
A visita à Funai e as cobranças não ocorrem de forma isolada. Em julho, uma carta foi enviada por relatores da ONU, denunciando a escalada da violência e pedindo medidas urgentes por parte do governo.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberO documento denuncia violações de direitos humanos e é assinado por Fernanda Hopenhaym, presidente do Grupo de Trabalho sobre a questão dos direitos humanos e corporações transnacionais e outras empresas de negócios, Morris Tidball-Binz, relator especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Mary Lawlor, relatora especial sobre a situação dos defensores dos direitos humanos, José Francisco Cali Tzay, relator especial sobre os direitos dos povos indígenas, e outros.
Na carta, eles apontam para uma "violência impune contra os indígenas Ka'apor, Guarani Kaiowá e Pataxó Hã Hãh Hãe por parte de fazendeiros e garimpeiros".
Se queixas da ONU eram comuns no governo de Jair Bolsonaro, o documento revela que os problemas não acabaram.
"Desejamos expressar nossa mais séria preocupação com o que parece ser um padrão de atos de violência contra os povos indígenas, devido à falta e à morosidade dos processos de demarcação e titulação de seus territórios, bem como à falta de medidas adicionais de proteção e segurança nessas terras", afirmaram os relatores.
"Parece que essas práticas, especialmente o não reconhecimento de direitos territoriais, são a causa principal do aumento de invasores, fazendeiros violentos, mineradores e madeireiros ilegais em terras tradicionais e da escalada de violência e ataques contra defensores de direitos humanos que se seguiu", dizem.
Os relatores ainda apontam a "grave preocupação com o assédio contínuo das empresas de mineração que os povos indígenas Ka'apor estão enfrentando em suas terras ancestrais e demarcadas". Também denunciam a contaminação do rio Maracaçumé, no Maranhão, por mineração ilegal e do rio Mboreviry, no Mato Grosso do Sul, devido a substâncias tóxicas liberadas pelo agronegócio.
"Também expressamos nossa preocupação especial com a falta de água potável e saneamento para os povos indígenas no Mato Grosso do Sul. Ao que parece, os povos indígenas Guarani Kaiowá estão vivendo em uma situação de insegurança alimentar e correndo o risco de contrair doenças graves devido ao consumo de água não potável e à impossibilidade de adotar hábitos de higiene adequados", alertam.
Gostaríamos de destacar que as alegações mencionadas acima lamentavelmente parecem ser violações prima facie das normas e padrões internacionais de direitos humanos,
Casos concretos no Maranhão
No documento, os relatores alertam para casos concretos de violações registrados já durante o governo Lula.
"Chamou nossa atenção o fato de que, em 22 de janeiro de 2024, grupos criminosos atacaram vários povos indígenas Ka'apor na área de proteção de Murutyrenda, o que resultou em ameaças de morte e destruição do veículo do Tuxa Ta Pame (Conselho de Administração Ka'apor)", diz a carta.
"As informações recebidas indicam que os povos indígenas Ka'apor também sofrem assédio das empresas de mineração. Aproximadamente 50 pedidos foram apresentados para exploração de ouro perto do Alto Turiaçu no Cinturão do Gurupi, um depósito aurífero de cerca de 12.000 km2 na fronteira entre os Estados do Pará e do Maranhão — com recursos estimados em mais de 158 toneladas de ouro", disse.
O documento destaca que embora as empresas de mineração não estejam operando no território Ka'apor, três pedidos ativos na Agência Nacional de Mineração para a exploração e o aproveitamento mineral têm como alvo a "zona de amortecimento" — uma área protegida próxima às terras Ka'apor que visa evitar que os impactos ambientais das atividades econômicas atinjam as áreas demarcadas.
"Segundo relatos, os limites do território Ka'apor não estão sendo respeitados pelas empresas de mineração, e elas já invadiram suas terras: em 2019, em Ximborendá, a aldeia Ka'apor mais populosa, e em 2020, na aldeia Waxiguirendá", diz a carta.
O documento destaca que que os "atores envolvidos no mercado de carbono também estão causando conflitos internos no território do Alto do Turiaçu". "Os Ka'apor têm sido assediados por uma empresa estrangeira e uma organização não governamental que estão prometendo um projeto de crédito de carbono dentro das terras indígenas sem qualquer autorização legal dos Povos Indígenas Ka'apor, que supostamente se manifestaram contra o projeto", alerta.
Violência no Mato Grosso do Sul
Outra denúncia se refere ao Mato Grosso do Sul que, segundo os relatores, vive "um aumento no nível de violência contra os povos indígenas, com a terceira maior taxa de mortes violentas de povos indígenas, juntamente com Amazonas e Roraima".
"Embora o estado não seja considerados uma região afetada pela mineração ilegal, ainda continua sendo um dos lugares mais perigosos para os povos indígenas no país, devido à violência proveniente e promovida por proprietários de terras em áreas de reintegração de posse e autodemarcação indígena", alertam os relatores. "Essa situação de violência é supostamente uma consequência da falta de demarcação dos territórios indígenas pelas instituições do Estado", denunciou.
Na carta, os relatores apontam para um caso de 21 de novembro de 2023, quando os povos indígenas Guarani e Kaiowá ocuparam o território tradicional desapropriado de Tororõ na fazenda Maringá, na cidade de Iguatemi.
"No dia seguinte, vários homens em caminhonetes começaram a atirar contra eles e sequestraram quatro indivíduos Guarani e Kaiowá. As informações indicam que os indígenas sequestrados passaram por várias horas de tortura, humilhação, agressões físicas e sexuais e ameaças de morte", apontam.
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