Jamil Chade

Jamil Chade

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Guerra cultural se intensifica e provoca onda de censura a livros nos EUA

No imponente prédio da histórica Biblioteca de Nova York, cartazes anunciam uma campanha contra a censura de livros. Não se trata de uma conscientização relacionada à realidade na Arábia Saudita, Irã, Cuba ou China. A operação é uma reação a uma onda sem precedentes de banimento de livros e censura adotadas por escolas públicas, bibliotecas e governos locais pelo território dos EUA.

Em um ambiente de uma crescente guerra cultural e pressão social por parte da extrema direita sobre professores e secretarias de educação, a constatação é de que, no ano escolar entre 2023 e 2024, 10 mil livros foram banidos nos EUA.

Os dados são da Pen America, entidade que reúne escritores e publicações americanas. Se por anos a instituição realizava campanhas e ajudava autores estrangeiros que viviam em regimes autoritários, a Pen America admite que, cada vez mais, seu trabalho passa a ser a defesa das liberdades fundamentais nos EUA.

Ao apresentar o levantamento, a instituição deixou claro que jamais contabilizou um volume de censura de tal dimensão. Entre 2022 e 2023, por exemplo, o número de títulos banidos era de 3,3 mil.

A explosão na censura ocorre em um momento de intensa polarização nos EUA, às vésperas de uma eleição presidencial marcada pela violência.

A conta inclui livros que foram proibidos por escolas públicas de serem adquiridos para aulas ou para suas respectivas bibliotecas. Uma parte significativa se refere à tradução na prática de motivações ideológicas adotadas por instituições de ensino. Mas há ainda um volume importante de banimentos que ocorreram em decorrência da aprovação de leis que abriram caminho para a censura.

Pelo menos dez leis entraram em vigor nos Estados Unidos, facilitando o banimento de livros.

Dois casos estaduais chamam a atenção: as legislações aprovadas na Flórida e Iowa, dando o respaldo legal para que a direção de uma escola opte por banir certos livros, sob o pretexto de proteger crianças contra conteúdos considerados como "inadequados".

No caso de Iowa, a lei 496 entrou em vigor em meados de 2023 e prevê que escolas possam oferecer apenas livros que possam ser considerados como "apropriados para a idade", sem que uma definição clara seja estabelecida. A mesma lei ainda proíbe qualquer descrição de um "ato sexual" nas obras. Debates sobre gênero, portanto, foram excluídos do material escolar.

Continua após a publicidade

Como resultado, mais de mil livros foram banidos no estado, em menos de um ano após a entrada em vigor da lei. Um ano antes, apenas 14 obras tinham sido vetadas.

Na Flórida, a lei criada em 2023 estipula que qualquer livro que debata a "conduta sexual" de um dos personagens deve ser suspenso imediatamente, enquanto um processo de revisão da obra é realizado para avaliar se ela pode ou não continuar nas prateleiras.

O movimento para banir livros pode ganhar uma dimensão ainda maior nos próximos meses, diante da entrada em vigor de outras leis pelo país. No estado de Utah, ficou estabelecido que se três cidades decidem proibir obras sob a alegação de ser um "material objetivamente sensível" para a comunidade, todo o estado é obrigado a retirar as obras de circulação.

Na Carolina do Sul, uma nova lei de 2024 proíbe livros com "conteúdo sexual", enquanto em Tennessee uma norma obriga escolas a retirar livros de contenham cenas de nudez, violência ou conteúdo sexual. Em ambos os estados, uma comissão estadual passa a ganhar poderes para vetar títulos.

Outra forte pressão contra as escolas vem de um movimento que ganha força nos EUA e que defende a ideia de que pais tem o direito de definir de que maneira professores podem ensinar ou recomendar leituras às crianças. Neste contexto, em Wisconsin, a escola pública de Elkhorn decidiu retirar de sua lista de leitura mais de 300 obras.

Racismo, liberdade da mulher, LGBTQI+

O levantamento deixa claro ainda que o foco da censura coincide com a pauta reacionária liderada pelas alas mais radicais do partido republicano de Donald Trump. Livros que denunciam o racismo estrutural nos EUA, obras que tocam em temas sobre a diversidade e os direitos do movimento LGBTQI+ são especialmente alvos de censuras.

Continua após a publicidade

Outro tema que surge com destaque na lista de obras banidas é a questão da mulher e sua relação com o sexo. De acordo com a Pen America, romances que dão atenção para a experiência da mulher com o sexo foram afastados da lista de leituras.

Livros que trazem relatos de mulheres e meninas que foram alvos de abuso sexual ou estupros também foram cancelados.

Para a Pen America, "esforços para suprimir a liberdade de ler continuam a atingir a literatura". De romances clássicos e ficções populares e até a história americana, alguns títulos banidos incluem "Morte no Nilo", de Agatha Christie, "Se o Disseres na Montanha", por James Baldwin, e muitos outros.

A lista, já a partir de 2021, incluía obras como "A Cor Púrpura" (Alice Walker) e "Amada" (Toni Morisson), além de obras de Sarah Maas e Stephen King.

Outros livros banidos neste ano incluem:

  • "Roots: The Saga of An American Family" (Alex Haley)
  • "A Tree Grows in Brooklyn" (Betty Smith)
  • "How Stella Got Her Groove Back" (Terry McMillan)
  • "Black Reconstruction in America, 1860-1880" (W.E.B. DuBois)
  • "The Kitchen God's Wife" (Amy Tan)
  • "How the Garcia Girls Lost Their Accents" (Julia Alvarez)
  • "Finding Junie Kim" (Ellen Oh)
  • "Prodigal Summer" (Barbara Kingsolver)
  • "Puddin" (Julie Murphy)
  • "Cold Sassy Tree" (Olive Ann Burns)
Continua após a publicidade

Resistência e mobilização pelo 'direito de ler'

A onda de censuras também passou a mobilizar grupos, escritores, livrarias e bibliotecas pelo direito à leitura. No próximo dia 19, uma campanha será iniciada com o objetivo de frear o movimento ultraconservador.

"As bibliotecas escolares servem ao processo educacional, disponibilizando conhecimento e ideias e garantindo que os livros permaneçam disponíveis para todos, independentemente de ideologias e ideias pessoais ou políticas", diz a Pen America. "A proibição de livros impede a liberdade de leitura, limitando o acesso dos alunos a uma diversidade de pontos de vista e histórias", alerta.

Para a Biblioteca Pública de Nova York, a maior rede do país, "a liberdade de ler é um valor americano que deve ser protegido".

"As proibições e contestações de livros nos EUA atingiram o ponto mais alto de todos os tempos em 2023 e continuam a ocorrer em um ritmo alarmante. É mais importante do que nunca demonstrar apoio às bibliotecas locais e à liberdade de leitura", defende a instituição.

Uma das iniciativas da Biblioteca Pública de Nova York foi a criação de um grupo de leitura de adolescentes, dedicado apenas aos livros que foram banidos em outros estados.

Continua após a publicidade

A resistência ainda inclui a criação de um guia para professores sobre a censura, além de exposições e ações de solidariedade a bibliotecas em estados onde livros são literalmente retirados dos acervos.

"Acreditamos que todos devem poder exercer sua liberdade de escolher o que ler. Estamos unidos às bibliotecas e comunidades de todo o país na oposição aos esforços para censurar ou proibir livros. Somos solidários com nossos colegas bibliotecários e membros da comunidade que estão sendo ameaçados. Demonstre nosso compromisso compartilhado com essa liberdade fundamental", declarou Tony Marx, presidente da Biblioteca Pública de Nova York.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes