Nomeada por Nunes costurou aliança global de reacionários e extrema direita
Angela Gandra, a nova secretária de Relações Internacionais do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), foi tida dentro do Itamaraty como a responsável por costurar uma aliança inédita do Brasil com os movimentos ultraconservadores do mundo e partidos de extrema direita durante a presidência de Jair Bolsonaro.
Mesmo depois da queda de Ernesto Araújo do comando do Itamaraty, em 2021, a ofensiva do governo Bolsonaro com grupos reacionários pelo mundo continuou e, em grande parte, esse trabalho coube à nova secretária de Nunes.
Gandra ocupava a Secretaria Nacional da Família do ministério comandado por Damares Alves e passou a ter uma ampla agenda de viagens internacionais e palestras para estrangeiros. Entre embaixadores, ela era considerada como o "cérebro" da guinada da "guerra cultural" promovida pela política externa bolsonarista.
Mulheres: aliança global com Hungria, Arábia Saudita e Trump
Ela foi uma das artífices, ao lado do governo de Donald Trump, da criação de uma aliança global para frear qualquer expansão da questão de educação sexual na agenda internacional. O projeto ficou conhecido como Consenso de Genebra.
Além do governo Bolsonaro, o projeto reuniu ainda governos ultraconservadores do Oriente Médio, denunciados por sérias violações contra o direito das mulheres, e a extrema direita mundial.
Com a derrota de Trump, Joe Biden anunciou no primeiro dia de seu mandato que estava retirando os EUA da pauta ultraconservadora. Mas, em emails internos, a administração americana indicava aos demais países que o projeto seria mantido e que a condução seria liderada pelo Brasil.
De acordo com os emails, foi o próprio governo brasileiro que se colocou à disposição para liderar o projeto.
"Estamos firmes no Consenso de Genebra, estamos recebendo mais demandas de países que querem estar conosco", disse Gandra, depois da derrota de Trump.
A meta era desmontar e questionar qualquer brecha para que organismos internacionais considerassem o aborto em suas decisões, recomendações ou medidas.
Gandra não se limitou ao trabalho da aliança. Numa viagem em 2021 e enquanto a pasta insistia à reportagem do UOL que ela estava de férias, a secretária participou, em Kiev, da Prayer Breakfast, uma tradição que começou nos EUA em 1935 e que envolve a reunião de políticos e movimentos ultraconservadores cristãos poderosos.
O movimento ganhou notoriedade ainda quando um documentário na Netflix, "The Family", revelou a dimensão do poder de seus membros e como atuam para manobrar o destino de leis e governos. Um de seus lemas é manter "uma diplomacia cristã invisível".
Angela Gandra, em suas redes sociais, indicou que defendeu valores conservadores em suas intervenções e como ouviu "de várias pessoas que encontram inspiração no Brasil".
Na capital ucraniana, o evento foi liderado por pessoas como Pavlo Unguryan que, quando deputado, apresentou vários projetos de lei para "banir a propaganda homossexual". Unguryan atua em parceria com a Aliança Ucrânia pela Família e tem vínculos com a direita religiosa norte-americana, mantendo relações com Mike Pence, vice-presidente dos EUA sob o governo de Donald Trump.
A visita da brasileira à Ucrânia ocorreu no momento em que o país via a criação de uma seção local do Ordo Iuris, uma organização ultracatólica que está vinculada à rede europeia da TFP. O grupo assinou um acordo com o Vsi razón, um movimento anti-LGBT.
Na Espanha, também em 2021, a secretária participou de um encontro com políticos católicos, além de discussões sobre "Estado de direito". Mas um dos encontros da brasileira foi com o membro do Tribunal Constitucional da Espanha, Andrés Ollero. Antiaborto e apontado por diferentes jornais espanhóis como um representante da Opus Dei, o magistrado votou por recursos para educação segregada.
Há dez anos, quando seu nome foi apresentado para ocupar o cargo, um vasto debate foi iniciado sobre suas declarações sobre temas sensíveis. Num deles, Ollero faz um duro ataque contra mulheres que abortam.
Ele ainda atacou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. "Falar em matrimônio homossexual não faz sentido algum em termos jurídicos, é algo inconcebível. Está sendo imposta, a partir do poder, uma opção moral e com tal medida somente se aspira que a sociedade deixe de considerar determinadas condutas íntimas —despidas de qualquer relevância jurídica— como imorais", completou.
Elogios em evento de herdeiros de Franco
Num outro evento, ainda no governo Bolsonaro, Angela Gandra afirmou a parceiros internacionais que as autoridades em Brasília estavam comprometidas em expandir a agenda ultraconservadora pelo mundo, levando as pautas antiaborto e de combate ao que chamam de "ideologia de gênero" para novas organizações internacionais. Ela se desculpou depois pelo uso do termo.
A informação foi dada diante de movimentos ligados a grupos religiosos e mesmo partidos xenófobos, como o espanhol Vox, herdeiros políticos do franquismo. No encontro, ela foi amplamente elogiada pelos anfitriões.
Ao destacar o compromisso do governo Bolsonaro sobre o tema, a secretária garantiu que as autoridades não se limitariam a implementar as medidas no âmbito doméstico. "Vamos levar para a OEA (Organização dos Estados Americanos) e para a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em seu tempo", disse Angela Gandra.
Ação na Corte Suprema dos EUA contra o aborto
Gandra ainda participou do processo na Corte Suprema dos EUA que determinou um novo rumo para o aborto nos estados americanos.
A representante brasileira fez parte de um "amici curiae", um instrumento para submeter ao tribunal sua opinião em relação ao tema sob debate. A decisão da corte desmontou 50 anos de flexibilidade para o aborto nos EUA foi amplamente comemorada pelo bolsonarismo.
A secretária assinou o documento que defendia a revisão ao lado de 141 acadêmicos —alguns dos quais brasileiros— que submeteram à corte sua opinião.
Para observadores, a decisão da brasileira de participar do grupo demonstrava a aliança que existe entre o movimento ultraconservador brasileiro e o grupo nos EUA que pressionou por uma mudança na lei americana.
No documento, o grupo diz que, se a corte "optar por consultar o direito internacional neste caso, descobrirá que não existe nenhum tratado que reconheça o chamado direito humano ao aborto, nem tal direito foi estabelecido através do direito consuetudinário".
"Pelo contrário, a prática em todas as regiões demonstra uma prerrogativa consistente do Estado para proteger a vida não nascida. Tampouco qualquer tribunal internacional declarou a existência de um direito internacional ao aborto, mesmo em regiões com os regimes de aborto mais permissivos", disse.
A ofensiva da qual Gandra fez parte alega que um grupo tenta "inventar um novo direito ao aborto" e "erram ao interpretar instrumentos internacionais chave, tais como a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, o Estatuto de Roma, e a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento".
A visão de Gandra e os demais juristas se contrapõe ao que a ONU avalia como sendo a base do direito. Para a entidade, a decisão da corte foi "um grande golpe para os direitos humanos das mulheres e para a igualdade de gênero"."O acesso ao aborto seguro, legal e eficaz está firmemente enraizado na lei internacional dos direitos humanos e está no centro da autonomia e capacidade das mulheres e meninas de fazer suas próprias escolhas sobre seus corpos e vidas, livre de discriminação, violência e coerção", afirmou a ONU.
"Esta decisão tira tal autonomia de milhões de mulheres nos EUA, em particular aquelas com baixa renda e as que pertencem a minorias raciais e étnicas, em detrimento de seus direitos fundamentais", alertou Michelle Bachelet, a então alta comissária da ONU para Direitos Humanos. "Mais de 50 países com leis anteriormente restritivas liberalizaram sua legislação sobre aborto nos últimos 25 anos. Com a decisão, os EUA lamentavelmente estão se afastando desta tendência progressiva", completa.
Na ocasião, o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos explicou que Angela é professora universitária. "Durante a sua carreira buscou a participação em pautas de interesse acadêmico. A secretária sempre destacou o seu posicionamento em defesa da vida, sendo um dos motivos para compor a equipe de gestores do atual governo", afirmou.
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