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Juliana Dal Piva

REPORTAGEM

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Os bastidores da delação negada da viúva do miliciano Adriano Nóbrega

Colunista do UOL

25/09/2022 04h00Atualizada em 26/09/2022 16h11

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Após ter sido alvo da Operação Gárgula, em março de 2021, Julia Lotufo, viúva de Adriano Nóbrega, tentou fazer um acordo de colaboração premiada para negociar uma redução de pena e até uma mudança para fora do país. Segundo a viúva, ela não participava dos negócios dele e relatou que ter medo de virar alvo dos inimigos do ex-capitão.

Mas ela não teve sucesso. O Ministério Público recusou a proposta de delação em novembro de 2021. Os promotores do grupo que investiga crime organizado, o Gaeco, avaliaram que o que Julia havia contado reunia informações que eles já tinham por conta de outras investigações.

Na opinião deles, Julia não tinha nada de novo para acrescentar. A coluna, porém, ouviu uma versão mais longa da recusa da delação. A história está contada no podcast UOL Investiga: Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro e foi apurada com cinco pessoas diferentes que pediram anonimato.

Julia foi acusada pelo MP-RJ de lavagem de dinheiro e organização criminosa devido ao uso do dinheiro oriundo do espólio de Adriano Nóbrega. Ela é apontada como a pessoa que fazia a contabilidade das finanças do ex-caveira. Antes de morrer, ele deu início à empresa Lucho Comércio de Bebidas Ltda. em 14 de maio de 2019 e colocou cerca de R$ 200 mil na firma. Um valor que Julia admitiu na delação que foi conseguido por meio dos crimes da milícia em Rio das Pedras e da máfia da contravenção.

Ela também diz que a ideia de Nóbrega era expandir o restaurante pela capital e usar o comércio para lavar o dinheiro sujo do crime. Julia constou como sócia do empreendimento junto com outras pessoas. No entanto, o marido morreu em fevereiro de 2020 e os planos não saíram do papel. O processo dela tramita na 1ª Vara Criminal Especializada.

Início das tratativas

A primeira tentativa dos advogados de Julia de fazer um acordo de delação aconteceu em maio de 2021. Seus advogados procuraram a cúpula do MP do Rio porque ela também tinha dados sobre pessoas com foro privilegiado, que só a Procuradoria-Geral de Justiça poderia investigar. No entanto, a PGJ informou para sua defesa e seu novo companheiro que não tinha interesse nesse acordo.

O procurador-geral do Rio, Luciano Mattos, não quis conceder entrevista devido ao sigilo dos casos. Procurada, Julia Lotufo também recusou.

A coluna apurou que Julia tinha intenção de citar o que ela sabia da história de Danielle Nóbrega, ex-mulher de Adriano Nóbrega, que tinha um cargo no gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio). Danielle ficou de 2008 até 2018 lotada na Alerj. A mãe dele, Raimunda Veras Magalhães, conhecida como Vera, também teve um cargo no gabinete do primogênito de Jair Bolsonaro, entre 2016 e 2018.

As duas, porém, nunca trabalharam lá e foram apontadas pelo MP do Rio como funcionárias fantasmas durante as investigações sobre o caso da rachadinha. Quando o MP investigava o paradeiro de Adriano Nóbrega, em julho de 2019, Julia foi flagrada ao telefone falando sobre a situação de Danielle.

"Ela [Danielle] foi nomeada por 11 anos. Onze anos levando dinheiro, R$ 10 mil por mês para o bolso dela. E agora ela não quer que ninguém fale no nome dela? Ela sabia muito bem qual era o esquema. Ela não aceitou? Agora é as consequências do que ela aceitou", disse, na gravação revelada pelo jornal Folha de S. Paulo.

Algumas pessoas que estavam presentes nas primeiras reuniões sobre a delação contaram à coluna que Julia queria dar mais detalhes sobre o que ela sabia do caso da rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro.

Interlocutores de Julia contaram à coluna que para ela é incompreensível ter ficado presa e agora viver monitorada com tornozeleira eletrônica enquanto a sogra fica longe do alvo dos promotores. Segundo ela, Vera possui desde 2011 um restaurante que foi fundado em sociedade com Adriano Nóbrega e esse negócio tem "coincidências" com o antigo grupo criminoso dele em Rio das Pedras. Os dados desses negócios são, inclusive, públicos.

Em agosto de 2019, uma reportagem do jornalista Hudson Corrêa na revista Crusoé revelou que, no mesmo endereço de uma das pizzarias de Vera, o Boteco e Brasa, no Rio Comprido, zona norte do Rio, funciona um outro CNPJ. A nota fiscal do estabelecimento indicou que ali existiam dois restaurantes. A partir do documento, verificou-se que os donos do segundo CNPJ eram Júlio Cesar Serra e Daniel Alves de Souza, que foram denunciados na Operação Intocáveis por formação de organização criminosa.

Segundo a promotoria, Júlio Serra atuava no controle da movimentação financeira do grupo e Daniel Souza era gerente da milícia na Muzema, comunidade na zona oeste do Rio de Janeiro. Os dois foram, depois, condenados pelo TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio).

E onde entra a mãe de Adriano Nóbrega e os restaurantes na história de Flávio Bolsonaro? Eles aparecem na investigação sobre rachadinha no gabinete do senador. Quando o MP quebrou o sigilo dos ex-assessores de Flávio, os promotores viram que a mãe e a ex-mulher de Nóbrega tinham repassado R$ 203 mil para Fabrício Queiroz. Mas não era tudo.

A questão é que os dados bancários de Danielle mostraram que ela não devolvia a maior parte do salário dela diretamente para Queiroz. Ela ficava com cerca de 90% dos valores recebidos ao longo dos dez anos. Já Vera ficava com cerca de 20%. Como Danielle era funcionária fantasma do esquema, Julia costuma contar que Nóbrega inteirava esse dinheiro para Queiroz, porque o dinheiro da rachadinha tinha que voltar para Flávio.

A conta de Queiroz também tinha recebido R$ 69,2 mil em transferências ou cheques de duas pizzarias de Vera e mais R$ 91,7 mil em depósitos não identificados de uma agência na mesma rua dessas pizzarias no Rio Comprido. A suspeita é que esse dinheiro vinha do próprio Adriano Nóbrega.

Mas Vera e Danielle não foram investigadas na Operação Gárgula. Elas estavam sendo investigadas apenas no caso da rachadinha com Flávio Bolsonaro. Como o STJ (Superior Tribunal de Justiça) anulou o acesso aos dados financeiros de Flávio, por consequência, as informações financeiras sobre elas também foram anuladas. Desde 2019, Flávio Bolsonaro nega irregularidades com relação às funcionárias e Fabrício Queiroz diz que as indicou para o gabinete do então deputado.

Ao anular as provas, o caso voltou ao início. A maioria das provas precisa ser refeita e uma das principais necessidades da investigação é ter novamente uma decisão judicial que autorize acessar esses dados. O que o MP precisa é de novas provas e indícios para pedir uma nova quebra de sigilo. A gravação de Julia falando de Danielle, feita com autorização judicial, seria uma prova ainda mais robusta se viesse com um depoimento.

Mas a cúpula do MP recusou essa colaboração dizendo que já tinha os dados que ela queria mencionar sobre Flávio. Depois, uma nova recusa aconteceu quando Julia tentou falar do Escritório do Crime e de acusações que tinha contra o bicheiro Bernardo Bello, com quem ela relata que seu marido trabalhou por muitos anos.

Só que essa confusão entre a primeira recusa da Procuradoria-Geral e as primeiras conversas para a delação sobre os assassinatos do grupo de Adriano Nóbrega gerou uma profunda crise dentro do MP. As promotoras que investigavam a morte da vereadora Marielle Franco acharam que havia alguma interferência. Por isso, decidiram deixar o caso. Procuradas, elas não quiseram falar desse episódio.

Em um depoimento em abril de 2022, Julia afirmou no TJ que chegou a trabalhar na Alerj, entre 2016 e 2017. Tinha um cargo de assistente na Subsecretaria-Geral de Recursos Humanos da Casa e recebia um salário de R$ 3.400. A nomeação dela foi assinada por Jorge Picciani, ex-presidente da Alerj, preso na Operação Cadeia Velha, braço da Lava Jato no Rio de Janeiro.

Na versão de Julia, mesmo como mulher do capitão Adriano, ela trabalhava. Fazia questão de ter o próprio dinheiro e não se envolvia nos negócios dele. Julia foi acusada de administrar o dinheiro dele, mas no depoimento no TJ disse que não tinha nenhum papel na administração dos negócios. Segundo ela, tanto era assim que, em 2017, quando deixou o emprego na Alerj, Julia também passou a receber dinheiro de Nóbrega por meio da pizzaria da mãe dele. Entrava na conta de Julia uma mesada de R$ 5.000 para pagar as contas.