Foragido, Allan dos Santos monta empresa e cria 'novo Terça Livre' nos EUA
Foragido da Justiça brasileira nos Estados Unidos, Allan dos Santos abriu uma empresa no estado da Flórida para reviver o Terça Livre, canal que o levou a ser investigado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por suspeitas de ser uma organização criminosa e ter cometido crimes contra a honra, incitação a crimes e preconceitos e fazer lavagem de dinheiro.
A nova empresa, Artigo 220 Corp, foi criada em 20 de outubro de 2021, mesma época em que o ministro Alexandre de Moraes emitiu, a pedido da PF (Polícia Federal), um mandado de prisão preventiva contra o blogueiro no âmbito do inquérito das milícias digitais.
Nas publicações do blogueiro, a Artigo 220 se mistura ao Terça Livre, projeto que ele manteve entre 2014 e 2021 para comentar acontecimentos da política e do qual se aproveitava para propagar mentiras. A iniciativa estava entre as mais bem-sucedidas da extrema direita: o canal do YouTube chegou a 1,2 milhão de inscritos e o canal de Telegram pessoal de Allan era recordista em inscritos e visualizações.
Hoje, Terça Livre e Artigo 220 são utilizados como sinônimos em publicações e na descrição do site "Notícias sem Máscara", onde os textos do blogueiro têm sido publicados desde janeiro.
"O Terça Livre/Artigo200 (sic) está vivo! O jornalismo independente não pode morrer. Assine para ter acesso completo à newsletter. Não perca uma atualização!", diz a descrição do projeto. O nome do novo projeto remete ao Mídia sem Máscara, criado em 2002 por Olavo de Carvalho como um "observatório de imprensa anticomunista".
A primeira página do site do Notícias sem Máscara leva à newsletter de Allan, que traz o logo do Terça Livre na parte superior e afirma ter mais de 76 mil inscritos. O site indica o conteúdo de outro ex-apresentador do Terça Livre, Max Cardoso, que produz vídeos sobre "filosofia, teologia, formação humana e cultura".
É por meio da newsletter que Allan dos Santos continua enviando "análises políticas" ao seu público, pedindo doações e divulgando seus novos projetos, como a "turnê de palestras" chamada "O Caminho da Liberdade", que começou em 8 de julho em Orlando, na Flórida. Os ingressos para o primeiro evento da turnê foram vendidos por US$ 10, cerca de R$ 50. O logo do Terça Livre está presente em todos os cartazes de divulgação da turnê.
De acordo com o perfil de LinkedIn da Artigo 220, que tem apenas 61 seguidores, Allan é o presidente e único funcionário da empreitada, definida como uma "organização criada nos EUA para defender os brasileiros que são defendidos pelo artigo 220 da Constituição Federal do Brasil". Esse artigo constitucional diz que "a expressão do pensamento, criação, expressão e informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerá qualquer restrição".
A empresa foi aberta para atuar em "todo e qualquer negócio legal", segundo registro acessado pela Agência Pública em uma parceria com o UOL e outros 22 veículos latino-americanos, além de quatro organizações especializadas em investigação digital sob a liderança do Clip (Centro Latino-Americano de Investigação Jornalística).
A última atualização oficial do registro da companhia se deu em 29 de abril deste ano, quando Allan apresentou o relatório anual da instituição — o documento serve para atualizar os dados e manter a firma ativa.
A reportagem da Pública foi até o local onde a empresa está registrada, o escritório de contabilidade e seguros USA Tax, gerido por brasileiros e localizado na cidade de Deerfield Beach, sul da Flórida. O contador responsável pela Artigo 220 afirmou que entrou em contato com o blogueiro e ele não permitiu que seu número de telefone fosse compartilhado com a reportagem. Deixamos nossos contatos para que fossem repassados a Allan, mas não houve retorno.
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Quero receberAtualmente, Allan dos Santos é investigado em dois inquéritos no STF: um sobre a propagação de fake news e outro sobre participação em milícias digitais que ameaçam a democracia brasileira. Ele está também na lista de procurados da Interpol, e o Brasil já solicitou sua extradição ao governo dos EUA.
Na decisão que determinou a prisão do blogueiro, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que existe "uma verdadeira organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político absolutamente semelhantes àqueles identificados no Inquérito 4.781 [inquérito das fake news], com a nítida finalidade de atentar contra a democracia e o Estado de Direito". O ministro é atualmente um dos grandes alvos da militância bolsonarista, que o acusa de perseguição ao grupo.
"O MJSP, através da Senajus, cumpriu todo o procedimento relacionado à extradição de Allan dos Santos, encaminhou às autoridades americanas e aguarda a definição com relação ao pedido feito", informou o secretário nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho.
No início deste mês, a Agência Pública revelou que o blogueiro é administrador de um grupo de Telegram com mais de 30 mil integrantes que convocou pessoas a participar da tentativa de golpe de 8 de janeiro. No dia da invasão, Allan participou de um Spaces no Twitter no qual argumentou que os protestos que querem Bolsonaro no poder apesar da decisão popular não eram caros. "É só comprar passagem de ônibus", disse.
Notícias sem Máscara
O site do Notícias sem Máscara foi criado em 25 de janeiro deste ano, quando o grupo anunciou a pretensão de se tornar um veículo de notícias, o NSM News. De acordo com as redes sociais, o projeto é "uma iniciativa de jornalistas que vivem no exterior e que buscam informar o que acontece no Brasil". Porém, além de Allan dos Santos, não há nomes de outros responsáveis e o registro oficial do site é privado.
Quando o site do grupo foi criado, Allan parabenizou o projeto: "Ergam um MURO de jornais em todo o mundo", escreveu em sua conta do Twitter, que está bloqueada para o acesso do Brasil, mas funciona em outros países. Ao contrário das redes do blogueiro — suspensas pelo STF —, os perfis nas redes e o site do NSM podem ser acessados em solo brasileiro.
No Twitter (que mudou de nome para X), a conta do movimento tem mais de 7.900 seguidores e é verificada pelo Twitter Blue, selo comprado a no mínimo US$ 8 (R$ 40) por mês da empresa de Elon Musk, que tem permitido que contas que propagam desinformação recebam o selo oficial.
Todos os últimos textos publicados no site do NSM são assinados por Allan dos Santos ou por "Terça Livre", sem menção aos outros supostos jornalistas responsáveis pelo projeto.
Abordam, entre outros temas, a pandemia de covid-19 — geralmente com disseminação de informações falsas sobre a segurança das vacinas e a eficácia de medidas como máscaras e o isolamento social —, espalham mentiras sobre o sistema eleitoral brasileiro e fazem críticas ao atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Em 26 de fevereiro deste ano, por exemplo, Allan dos Santos publicou um texto em que afirma que Lula "não foi eleito, mas instalado" como presidente, o que é mentira. O texto tem 125 curtidas no site. Nos últimos meses de 2022, o blogueiro era presença constante em atos nos EUA que protestavam contra o resultado eleitoral e diziam, sem base nos fatos, que as eleições brasileiras tinham sido roubadas.
Já uma publicação de 13 de junho de 2023 propaga mentiras sobre a imunização contra a covid-19, que é comprovadamente segura. "A terapia gênica (que eles chamam de vacina) da covid-19, matou milhares de pessoas - causa trombose, AVC, câncer, infarto, problemas cardíacos e mortes súbitas, sobretudo em jovens e adultos." O conteúdo tem 35 likes e é assinado por Karina Michelin, mas não apresenta fontes para as afirmações.
Além de Michelin, outros nomes aparecem assinados em alguns dos textos do NSM, como João Luiz Mauad, Ana Maria Cemim e Renata Barreto. Em abril deste ano, Allan disse em seu podcast "Guerra de Informação" que se trata de "voluntários", pessoas que o ajudam "a manter o site, escrevendo as matérias".
Allan e seus voluntários também ecoam o pensamento chamado pela extrema direita de "globalismo", teoria conspiratória segundo a qual o mundo seria coordenado por uma elite global que se esforçaria para promover a doutrinação e o autoritarismo.
"Acham mesmo que essa população sofrida sabe o que é globalismo, agenda 2030, problemas culturais, doutrinação nas escolas etc.? Essa população não sabe o que se passa no país e no mundo. Eles não sabem e por isso não reagem de maneira proporcional e efetiva contra os tiranos", escreveu o blogueiro em um texto publicado em 12 de junho deste ano, que teve 29 curtidas.
Apenas parte do conteúdo está disponível no site. Para acessar a íntegra, é necessário desembolsar ao menos US$ 5 por mês (cerca de R$ 25). Quem paga mais de US$ 71 por ano (ou R$ 355) pode ser adicionado a um grupo exclusivo de WhatsApp.
Além do site, Notícias sem Máscara é o nome de um canal de Telegram que Allan dos Santos assumiu em 18 de janeiro, após o canal do Terça Livre ter sido retirado de circulação por ordem judicial. Em vídeo e áudio enviados na plataforma, ele pediu que o público divulgasse a conta, hoje com mais de 11,6 mil inscritos. O canal, criado em junho de 2022, passou a ser usado com maior frequência neste ano, o que descumpre ordem judicial.
Em fevereiro de 2022, decisão do STF proibiu o blogueiro de manter contas ativas, mas ele continua criando novos perfis.
'Novo Terça Livre'
Quando a Artigo 220 foi registrada nos Estados Unidos, os negócios de Allan dos Santos no Brasil passavam por dias difíceis. Em 14 de outubro de 2021, cerca de uma semana antes da criação da empresa em terras estadunidenses, o perfil de Allan no Twitter e o canal de YouTube do Terça Livre haviam sido suspensos. Para driblar a situação, os vídeos do antigo canal passaram a ser publicados no Artigo 220.
"O Terça Livre foi censurado. Na sexta-feira, já perdeu suas redes sociais e ontem foi a perda do canal do YouTube, que foi bloqueado no Brasil. Com isso, o que aconteceu foi o seguinte: o Artigo 220 adquiriu o direito dos programas do Terça Livre e agora os programas do Terça Livre serão transmitidos no Artigo 220", disse o apresentador Max Cardoso.
Uma semana depois, o canal da Artigo 220 também foi suspenso por ordem judicial, e Italo Lorenzon, que atuava com Allan no Terça Livre, anunciou o fim do blog. "Hoje, 22/10/2021, o 'Terça Livre' encerrou suas atividades. Muito obrigado a todos", publicou no Twitter.
A nova vida do Terça Livre
Mas Allan não desistiu e usou a estada nos Estados Unidos para reviver a iniciativa.
"Você sabia que o Terça Livre NÃO ACABOU?", publicou o blogueiro em seu LinkedIn em junho deste ano. A publicação trazia um link para o canal do "Terça Livre TV" no Rumble, plataforma que se propõe a ser um concorrente do YouTube e que tem se firmado como a plataforma preferida da extrema direita.
No Rumble, o Terça Livre TV tem mais de 20,8 mil seguidores e posta vídeos com "análises" feitas por Allan quase todos os dias. Alguns conteúdos reproduzem a estética e o logo oficial do Terça Livre, outros, do NSM.
Os conteúdos ali publicados são monetizados pela plataforma, ou seja, geram financiamento por meio de propaganda para o dono do canal. Entre os anunciantes identificados pela reportagem estão a agência de turismo e venda de passagens 123 Milhas, a varejista Americanas e as cervejas Corona Extra e Heineken.
Allan dos Santos tem também uma conta no Locals, uma plataforma dos mesmos donos do Rumble que permite que criadores de conteúdo formem comunidades e sejam financiados por ela. Um acesso pago ao Locals do blogueiro custa no mínimo US$ 10 por mês, cerca de R$ 50. Alguns conteúdos são acessíveis a todos os membros e outros, apenas aos pagantes.
Tanto o canal do Terça Livre no Rumble quanto a comunidade no Locals são indicados na página "Sobre nós" do NSM News como os canais oficiais do grupo. O Notícias sem Máscara também tem uma conta no Locals, mas ainda não fez nenhuma postagem.
Nos últimos meses, o Locals e o Rumble têm crescido entre a extrema direita, em parte pelo fato de seus criadores afirmarem que não obedecerão a ordens judiciais de retirada de conteúdos, como explicou o comentarista político Paulo Figueiredo em vídeo publicado no YouTube em 18 de janeiro deste ano — o conteúdo está fora do ar por ordem judicial. "Eu conversei com os executivos, [eles] não vão [retirar o conteúdo], [eles] reconhecem [que] isso viola a filosofia da empresa", afirmou.
As redes têm cumprido a promessa: em 14 de junho, o ministro Alexandre de Moraes pediu a suspensão do canal de Monark no Rumble, sob pena de multa diária de R$ 100 mil. Mais de um mês depois, o perfil continuava disponível.
Tanto Allan dos Santos quanto Paulo Figueiredo atualmente vivem na Flórida, onde estão localizados os escritórios das duas redes. De acordo com a análise da plataforma de marketing digital SEMRush, os nomes dos dois estão entre as palavras-chave que mais levam as pessoas ao site do Locals no Brasil — o que indica que usuários têm entrado na plataforma à procura desses conteúdos.
Próximos aos donos do Rumble e do Locals, os dois influenciadores têm produzido conteúdos diretamente do estúdio recém-inaugurado do Locals em Miami, "que tem uma parceria bem bacana com a gente", como explicou Figueiredo em 13 de maio deste ano, quando eles apresentaram juntos um programa no estúdio.
A reportagem entrou em contato diversas vezes com a assessoria de imprensa do Rumble e pediu para visitar o estúdio de criadores de conteúdo em Miami, mas não obteve retorno.
Além do financiamento pelo site do NSM, Rumble e Locals, Allan pede dinheiro em outro site em seu nome (allansantos.digital). A página cobra entre US$ 99 e US$ 199 anualmente por suas assinaturas, o equivalente a cerca de R$ 495 e R$ 995. Ao clicar na seção de notícias do blog, o usuário é redirecionado ao site do Notícias sem Máscara.
O "exílio" de Allan
Para além do online, Allan dos Santos se mantém mobilizado e é presença frequente nos eventos promovidos pela comunidade brasileira bolsonarista nos Estados Unidos.
Em novembro do ano passado, ele esteve em manifestação em Nova York em que afirmou que as eleições brasileiras foram roubadas. "Nós não podemos auditar os votos, prestem atenção, no Brasil nós não podemos auditar os votos, então a gente nunca sabe o que acontece quando votamos", afirmou ele, em inglês. O Tribunal Superior Eleitoral fez várias auditorias nas urnas nos últimos e é possível auditar os votos após as eleições.
Allan dos Santos participou também de ato em 4 de dezembro em Miami, na Flórida, organizado pelo coletivo Yes Brazil USA, que também tem propagado mentiras sobre as últimas eleições. Ele esteve acompanhado de outras conhecidas lideranças da extrema direita americana, como Matthew Tyrmand, que comemorou a invasão dos prédios públicos brasileiros em 8 de janeiro, junto de Steve Bannon, ex-estrategista chefe de Donald Trump.
O blogueiro esteve presente na CPAC 2023 — Conferência de Ação Política Conservadora — em março deste ano, que contou também com participação dos deputados federais bolsonaristas Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Nikolas Ferreira (PL-MG) e no qual o próprio Jair Bolsonaro discursou. Lá Allan mostrou uma iniciativa de chineses de direita e anunciou um plano de criar algo semelhante no Brasil.
Atualmente, Allan organiza a "turnê de palestras" "O Caminho da Liberdade", que já teve eventos em cidades como Orlando e Miami — no segundo caso, o evento foi feito em parceria como grupo Yes Brazil USA, um dos responsáveis pela organização da agenda de Jair Bolsonaro enquanto ele morou nos Estados Unidos, conforme apurou a Agência Pública.
De acordo com publicação no NSM News, o evento ainda passará por Atlanta, Filadélfia, Boston e Nova York.
Mercenários digitais é uma investigação do Chequeado (Argentina), UOL y Agência Pública (Brasil), LaBot (Chile), Colombiacheck y Cuestión Pública (Colômbia), CRHoy, Interferencia y Lado B (Costa Rica), GK (Equador), Factchequeado (EUA) Ocote (Guatemala), Contracorriente (Honduras), Animal Político y Mexicanos Contra la Corrupción y la Impunidad (México), Confidencial y República 18 (Nicarágua), Ojo Público (Peru), El Surti (Paraguai), La Diaria (Uruguai) e tres jornalistas investigativas da (Bolívia y España/Colombia); as organizações de pesquisa digital Cazadores de Fake News (Venezuela), Fundación Karisma (Colômbia), Interpreta Lab (Chile), Lab Ciudadano (Honduras) y DRFLab (EUA); alunos do curso de mestrado Using Data to Investigate Across Borders do professora Giannina Segnini (Universidade de Columbia, EUA), com a coordenação do Centro Latinoamericano de Investigación Periodística CLIP. Análise e a consultoria jurídica: El Veinte.
Com o apoio financeiro da Free Press Unlimited, o programa Redes contra el silencio (ASDI), Seattle International Foundation e Rockefeller Brothers Foundation.
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