EUA fazem eleição mais tensa em meio século, com potencial de efeito global
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Os Estados Unidos da América (EUA) realizam hoje as eleições mais tensas desde a vitória do republicano Richard Nixon em 1968. Há meio século, o país vivia uma atmosfera de divisão política e social tão intensa e radical como em 2020.
A Guerra do Vietnã (1959-1975) já se revelara um fracasso retumbante, estimulando protestos em todo o país. Num intervalo de apenas dois meses, foram assassinados Martin Luther King Jr. e Robert Kennedy.
Morto em 4 de abril de 1968, o reverendo Luther King, com apenas 39 anos, era o principal líder do movimento pelos direitos civis. Seu assassinato desencadeou manifestações que finalmente levaram o então presidente Lyndon B. Johnson a assinar a histórica Lei dos Direitos Civis, uma vitória do movimento negro contra políticas oficiais de segregação racial.
Na época, áreas de Washington pegaram fogo literalmente. Em 4 dias de protestos, 13 pessoas morreram e cerca de 900 estabelecimentos comerciais foram danificados.
Nas vésperas da eleição de 2020, com medo de manifestações violentas, o comércio da capital americana fechou vitrines e portas com placas de madeira prensada, proteção típica para furacões. Edifícios de uso residencial e comercial contrataram segurança privada para reforçar a vigilância de garagens e portarias na terça e quarta. Essa preparação se repetiu em outras cidades americanas.
Ao lado da Casa Branca, o tradicional Hotel Willard avisou os hóspedes de que há uma manifestação marcada entre as 16h e a meia-noite desta terça-feira na esquina das ruas 16 e H para acompanhar a apuração. No mesmo local, haverá concentração às 18h de quarta. Manifestantes planejam buzinaços nas redondezas da Casa Branca na quinta às 7h, 9h e 11h da manhã, criando engarrafamentos. O Serviço Secreto reforçou o policiamento na região. Uma cerca reforçada usada nos protestos de junho foi reerguida em volta da sede do Executivo americano.
Robert Kennedy foi vítima de um atentado político como o irmão JFK (presidente John Fitzgerald Kennedy, assassinado em 22 novembro de 1963). Ex-procurador-geral, senador por Nova York e aliado dos defensores dos direitos civis, Robert foi morto em 6 de junho de 1968, quando, aos 42 anos, fazia uma promissora campanha para ser o candidato do Partido Democrata à Casa Branca.
Parecia o fim dos EUA e do mundo. No Brasil, a ditadura militar (1964-1985) estava prestes a entrar na sua fase mais violenta, na qual prenderia, torturaria e mataria opositores. O movimento de Maio de 1968 na França inspirava jovens de todo o planeta a lutar por uma revolução cultural que moldaria a vida moderna no fim do século 20.
Clima de fim do mundo
Esse clima de fim do mundo deu as caras novamente nos EUA em 2020, o ano da pandemia de coronavírus e da eleição mais importante da história recente do país.
Os Estados Unidos são a nação com o maior número absoluto de casos e de fatalidades por covid-19. Há mais de 9 milhões de infecções e mais de 231 mil mortos.
Numa resposta que misturou incompetência administrativa, negligência sanitária e cálculo político equivocado, o presidente Donald Trump, 74 anos, subestimou o coronavírus, que acabaria com o seu principal ativo eleitoral, uma economia em crescimento. O presidente negou a ciência e não apresentou uma estratégia nacional contra o maior problema de saúde pública do planeta em 100 anos. "Estamos virando a página", afirma Trump, contrariando a realidade.
Na reta final da eleição, os EUA bateram recordes diários de novos casos de covid-19. Segundo as pesquisas, dois terços dos americanos reprovam a resposta que o presidente deu à pandemia, que virou o calcanhar de Aquiles do republicano e pode lhe custar a Presidência. "Trump se rendeu ao vírus", diz o candidato do Partido Democrata, Joe Biden, 77 anos.
2020 nos EUA: George Floyd, covid-19 e supremacistas brancos
A violência policial contra os negros reativou a luta nacional para enfrentar o racismo sistêmico, a exemplo do que aconteceu nos 60 do século passado. Dessa vez, uma maior parcela da população branca, especialmente jovem, gritou nas ruas que "Vidas Negras Importam". Manifestações, pacíficas em sua grande maioria, espalharam-se por cidades dos EUA. Negros morreram, sobretudo homens, nas mãos de uma polícia violenta e despreparada.
Na maioria dos casos, houve execução por reação desproporcional ou assassinato puro e simples, como em 25 de maio, quando um policial branco matou George Floyd em Minnesota por asfixia ao se ajoelhar no pescoço dele durante quase nove minutos.
Nesse contexto de tragédia sanitária, divisão política e desassossego social, Trump faz uma campanha eleitoral que coroa um mandato no qual contou mais de 20 mil mentiras, de acordo com a imprensa americana.
Com retórica agressiva e populista, o republicano tenta a reeleição difundindo teorias conspiratórias que estimulam os instintos mais primitivos da extrema direita. Em relato ao Congresso, o FBI, a polícia federal americana, alertou que milícias conservadoras e grupos de supremacistas brancos são a maior ameaça à segurança nacional dos EUA.
Trump joga gasolina na fogueira ao dizer que só perderá a eleição se ela for "roubada", dando corda a mentiras sobre fraudes maciças na votação pelo correio, método de escolha que foi adotado até na reeleição de Abraham Lincoln em 1864, em plena Guerra Civil (1860-1865). O voto via correio tem histórico de confiabilidade nos EUA.
O presidente e seu filho Donald Trump Jr. incentivam apoiadores a atuarem como fiscais de urna nesta terça-feira, uma atitude ilegal para tentar intimidar eleitores democratas a votar. Essa estratégia está em sintonia com as manobras do Partido Republicano para dificultar ou suprimir votos, como a ameaça de Trump de recorrer à Justiça para anular cédulas enviadas pelo correio. Mas a votação antecipada recorde nestas eleições foi uma das respostas do eleitorado contra essa tática do medo.
Mais de 100 milhões de americanos votaram antecipadamente, via correio ou indo fisicamente a seções eleitorais abertas nos estados antes de 3 de novembro. É um número recorde, que equivale a 73% do total de votos em 2016. No voto antecipado, a maioria dos eleitores tinha tendência democrata, segundo pesquisas. Os mesmos levantamentos apontaram que eleitores republicanos prefeririam, na sua maioria, deixar parar votar nesta terça.
Biden uniu o próprio partido e promete unir os EUA
Biden faz uma campanha que é notícia pela sensatez nos tempos atuais. Ele promete ouvir os cientistas a fim de enfrentar a pandemia e governar para todos os americanos, inclusive para os que não votarem nele. Com uma vida de tragédias pessoais, o moderado e empático ex-vice-presidente de Obama selou uma aliança com a ala esquerda do Partido Democrata, unindo a legenda para evitar a armadilha da divisão que contribuiu para a derrota de Hillary Clinton em 2016.
O candidato democrata tem o programa de governo mais progressista para os padrões de um presidente americano na história recente. O voto feminino, jovem e negro está, em sua maioria, ao lado de Biden.
Apesar da vantagem nas pesquisas no voto nacional e nos estados mais importantes no Colégio Eleitoral, os democratas sofrem com ansiedade eleitoral, um espécie de estresse pós-traumático devido à surpreendente derrota de Hillary Clinton há quatro anos.
"Não podemos ser complacentes. Não me importo com as pesquisas. Houve um monte de pesquisas da última vez. Não deu certo", disse Obama, estimulando eleitores a votar num recente ato de campanha na Filadélfia, na Pensilvânia, estado considerado decisivo nas eleições de 2020. Biden lidera na Pensilvânia com vantagem de 5 a 7 pontos percentuais, a depender da média das pesquisas, mas convém lembrar que Trump ganhou de Hillary lá por margem apertada.
Democracia em risco
Nos EUA, há um debate público sério sobre a capacidade de resistência dos freios e contrapesos de uma democracia bicentenária a um político que exerce a Presidência de forma imperial e como se fosse um negócio de família.
Trump desrespeita as próprias diretrizes sanitárias do governo ao fazer comícios que se transformaram em eventos superdifusores de coronavírus. Recusa o compromisso de realizar uma transição de poder pacífica em caso de derrota. E, sem o menor pudor, usa a mentira com arma política em seus discursos e nas redes sociais.
A democracia americana sobreviveria a mais quatro anos de Donald Trump?
Em 1968, o republicano Nixon acabou se beneficiando das turbulências políticas, sociais e culturais da época. Mas a mesma estratégia de "lei e ordem" soa como farsa ainda maior sob Trump, que governa sem apreço pela Constituição e a democracia de forma inédita na história do país.
Em 2020, a pandemia e as inquietações da sociedade americana parecem favorecer o democrata Biden, cuja vitória teria uma repercussão civilizatória de efeito global.
A resposta virá quando começar a apuração dos votos desse intricado e arcaico sistema político, que despreza o princípio de "uma pessoa, um voto" ao dar mais peso a alguns estados no Colégio Eleitoral, única razão para Trump ainda ter o mínimo de esperança de não entrar para a história como mais um raro presidente de um mandato só.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.