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Leonardo Sakamoto

Defender que menina estuprada pelo tio não possa abortar leva ao inferno

Cartazes da contravigília pelo direito ao aborto em frente ao hospital Pérola Byington, em São Paulo  - BBC
Cartazes da contravigília pelo direito ao aborto em frente ao hospital Pérola Byington, em São Paulo Imagem: BBC

Colunista do UOL

16/08/2020 04h33

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A sensação de fracasso da civilização é grande ao constatar que existem pessoas defendendo a continuidade da gestação da menina de dez anos, estuprada durante anos pelo tio, em São Mateus, no Espírito Santo.

A menina não quer prosseguir com a gravidez e teve sua vontade respeitada pela Justiça. A Vara da Infância e da Juventude autorizou a interrupção, seja pela realização do aborto ou pela antecipação do parto - pela lei, a decisão seria do responsável legal por ela ser menor de idade. Por aqui, isso é permitido em três situações - estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia. Ela, portanto, preenche dois dos três requisitos.

Mesmo assim, políticos e religiosos pressionaram para que ela leve a gestação até as últimas consequências. Seu estado de saúde inspira cuidados.

Um caso semelhante chocou a América do Sul há cinco anos. Uma menina paraguaia, também de dez anos, engravidou após ter sido estuprada pelo padrasto de 42 anos. O covarde, assim como o tio da menina de São Mateus, fugiu.

A interrupção da gravidez por lá só era permitida em caso de risco de vida para a mãe. Daí, o Ministério da Saúde paraguaio disse que não havia indícios que a saúde da menina estivesse em risco e a igreja bateu bumbo para que o aborto não fosse realizado. Com isso, ela veio a dar à luz.

Se bispos tivessem útero, a história seria diferente, é claro.

Em 2009, o então arcebispo de Olinda e Recife José Cardoso Sobrinho afirmou que os médicos envolvidos no aborto legal feito por uma menina de nove anos, grávida de gêmeos do padrasto que a estuprava desde os seis, incorriam em excomunhão.

O rapaz de 23 anos, que também violentava a outra enteada de 14 anos, foi preso ao tentar fugir.

"A lei de Deus está acima de qualquer lei humana. Então, quando uma lei humana, quer dizer, uma lei promulgada pelos legisladores humanos, é contrária à lei de Deus, essa lei humana não tem nenhum valor", disse o bispo de forma desnecessária. "Os adultos, quem aprovou, quem realizou esse aborto, incorreu na excomunhão. A Igreja não costuma comunicar isso. Agora, a gente espera que essa pessoa, em momentos de reflexão, não espere a hora da morte para se arrepender."

Ela tinha 1,36 m e 33 quilos, ou seja, sem estrutura física (e psicológica) que sustentasse uma gravidez. A versão paraguaia dessa história de terror tem 1,39 m e 34 quilos, ou seja, quase a mesma pessoa.

Os médicos, que a avaliaram, temiam por sua vida caso a gestação continuasse. Organizações de direitos da criança e da mulher deram suporte à família e criticaram a declaração do religioso.

Não há alguém, em sã consciência, que aborte por gosto. Interromper uma gravidez é um ato traumático para o corpo e a cabeça da mulher e é realizado quando não há outra saída.

Poderíamos tratar da questão do justo direito da mulher à autonomia sobre o próprio corpo - só para ouvir de fundamentalistas frases superficiais como "e o direito do embrião, como fica?" ou "e o feto teve escolha?"

Mas podemos pular essa parte e ir direto para uma questão pragmática, de saúde pública: abortos vão acontecer diante do desespero de uma menina ou de uma mulher. Garantir que o Estado reconhecesse o direito ao aborto seguro evitaria milhares de mortes por procedimentos clandestinos ou realizados de forma precária.

Para além do debate religioso, legal e filosófico, é uma questão de redução de danos. Ao invés de avançarmos para o lado da dignidade das mulheres, contudo, fundamentalistas querem que rastejemos para o lado oposto.

Mesmo em situações em que o aborto é permitido, mulheres que recorrem à interrupção da gravidez enfrentam os mais diversos tipos de violência. Há médicos que recusam atender mulheres mesmo em processo de abortamento espontâneo; servidores públicos chamam a polícia alegando que elas cometeram crime; e o calvário de ter que viajar muitos quilômetros para encontrar um serviço público que possa atendê-las, pois há médicos e hospitais que se negam.

Enquanto isso, as bancadas do fundamentalismo religioso no Congresso Nacional, em Assembleias Estaduais e Distrital e nas Câmaras Municipais têm atuado em nome de projetos que são retrocessos à dignidade humana.

Um pouco de história recente. O projeto de lei 5069/2013 buscava criminalizar a orientação sobre o aborto legal, com penas maiores se quem ajudar for agente de saúde. O relator do projeto acrescentou barreiras para o aborto em caso de gravidez resultante de estupro - a vítima teria que registrar boletim de ocorrência e fazer exame de corpo de delito. Ou seja, sofreria uma segunda violência. Já a PEC 181/2015 previa a extensão da licença-maternidade no caso de bebês prematuros, mas foi inserido um elemento estranho à pauta, que altera a Constituição para prever que a "dignidade da pessoa humana" começa na concepção, o que poderia restringir o direito à interrupção da gravidez.

A proporção que toma um caso como o da menina de São Mateus que deveria ser simples e lógico, muito por conta de políticos que acham que o corpo de meninas e mulheres é um campo de batalha para a sua cruzada particular, é a prova que estamos ainda mais próximos de uma distopia apocalíptica do que de uma sociedade de direitos.

Como já disse aqui um rosário de vezes, líderes políticos, magistrados, religiosos fundamentalistas, comunicadores, humoristas dizem que não incitam a violência contra outros. Não são suas mãos que seguram a arma, mas é a sobreposição de seus argumentos ao longo do tempo que distorce a visão de mundo das pessoas comuns e torna o ato de atacar banal. Suas ações e regras redefinem, lentamente, o que é moralmente aceitável, visão que depois será consumida e praticada por terceiros. Estes acreditarão estarem fazendo o certo, quase em uma missão civilizatória. Ou divina.

Também já disse aqui que tenho a certeza de que se Jesus, o personagem histórico, vivesse hoje, defendendo a mesma ideia presente nas escrituras sagradas do cristianismo, mas atualizando-a para os novos tempos, seria humilhado, xingado, surrado, queimado, alfinetado e explodido. Seria chamado de defensor de "abortista", "viado imprestável", "mendigo sujo" e "sem-teto vagabundo". Olhado como subversivo, acusado de "heterofóbico" e "cristofóbico". Batizado como agressor da família de bem e dos bons costumes.

Por isso, uma das passagens mais legais dos Evangelhos cai aqui como uma luva: Lucas, capítulo 23, versículo 34: "Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem".