Privatização provocou apagão em SP e há risco para Sabesp, diz secretário
Os repetidos apagões que São Paulo tem sofrido no último ano são resultado direto da privatização de serviços essenciais que deveriam ser providos pelo poder público, diz Wadih Damous, secretário Nacional de Direito do Consumidor, do Ministério da Justiça. Desde sexta (11), moradores da maior cidade do país sofrem com o corte no fornecimento de energia.
À coluna, ele alerta para os riscos sobre outros sistemas, como o de água em São Paulo —a Sabesp foi privatizada em 2023. Damous já foi presidente da OAB-RJ (Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro) e deputado federal pelo PT.
"Estou falando do meu ponto de vista pessoal, não é uma posição do governo", diz ele. "Os episódios mostram que, quando se fala de privatização, precisa refletir melhor. O governador de São Paulo [Tarcísio de Freitas, do Republicanos] hoje defende cassação de concessão [da Enel], mas, meses atrás, patrocinou a privatização da Sabesp."
"Privatizou, a gente não pode fazer mais nada. A não ser, reagir se acontecer algo parecido."
Damous afirma que as exigências são baixas na hora de vender os sistemas para a iniciativa privada e o ônus recai para o consumidor e para o governo federal, que precisa entrar no caso para resolver questões de abastecimento.
"Vai privatizar? O contrato de concessão tem que ter aterramento [da fiação elétrica]. Quando chego na Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] por conta do apagão passado [em novembro e em março], ouço que o Estado vai ter que entrar [no caso para resolver o problema]. Mas, na hora que privatiza, não. O Estado só entra na hora de ter prejuízo. Aterrar custa caro. Eles [empresa e prefeitura] ficam só com a parte boa [o dinheiro da privatização]."
Na contramão de países desenvolvidos
O secretário destaca que vender serviços essenciais para a iniciativa privada vai na contramão do que está acontecendo em países desenvolvidos.
"Vai na contramão do que está acontecendo no mundo. Vários países que privatizaram estão reestatizando água e energia. São necessidades básicas do ser humano. Você não pode estar submetido ao processo do lucro. Por que o Estado necessariamente não presta um bom serviço? Isso é ideologia. E ideologia baseada na ideia do 'vamos lucrar'."
Um levantamento divulgado em 2019 mostra que ao menos 55 países tiveram algum processo de reestatização entre 2000 e 2017, incluindo Alemanha, França, Reino Unido e Estados Unidos.
Para o secretário, a lógica no caso da Enel em São Paulo é a mesma que foi seguida pelo governo do Rio ao terceirizar os testes de sangue de órgãos para doação e que culminou na tragédia de pessoas infectadas com HIV.
"É a mesma ótica do laboratório do Rio: 'Não vamos perder tempo com análise aqui, quanto você quer [para fazer os testes]'? E o resultado são as pessoas infectadas."
"É a ideia de lucrar. E aí não investe, demite o pessoal especializado, terceiriza. A gente vai multar, eles vão recorrer, ganhar na Justiça. Há pouco menos de um ano foi a mesma coisa."
Serviços não melhoraram
Damous diz que os processos de privatização não resultaram em melhoria dos serviços. Segundo ele, quando estatal, as premissas eram de um serviço ruim com tarifas caras.
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Quero receber"Vai dizer que Enel, Light e outras concessionárias prestam bom serviço? As tarifas baixaram? Pelo contrário", afirma. Segundo ele, "a Eletrobras era uma excelente estatal".
A distribuição de energia elétrica em São Paulo é privatizada desde 1998. O processo de desestatização do setor no estado começou durante a gestão do então governador Mário Covas.
O problema, diz Damous, é que o raciocínio da empresa privada visa o lucro e não o bem-estar da população. Por isso, as empresas não fazem os investimentos necessários —e caros— para prevenir danos.
"A medida preventiva é sempre mais barata. Vai sair caro pra ela, sobre algo que ela deveria ter feito e não fez e vai levar prejuízo. Mas não tem jeito, não entra no cálculo, a prevenção sempre baixa lucratividade. É o raciocínio da iniciativa privada, não de empresa estatal."
Ele diz ainda que, quando as empresas assumem as concessões, demitem os funcionários experientes que sabem lidar com emergência, e terceirizam pessoal "porque fica mais barato".
"No Japão tem tsunami, furacão, vulcão. Você sabe em quanto tempo restabelece os serviços? Dez minutos. E ai da empresa que não restabelecer. E podem falar: 'Ah tem tecnologia avançada'. Por que não se exige tecnologia avançada quando vai fazer privatização para essas concessionárias?."
Eventos climáticos extremos viraram regra
Damous afirma não ter dúvidas de que o argumento da Enel para a queda de energia será a ocorrência de um "evento climático extremo".
No entanto, diz ele, não há mais espaço para as empresas trabalharem com essa desculpa. Em junho de 2024, o governo federal publicou um decreto com regras mais rígidas para os contratos com distribuidoras de energia.
"Sancionamos dizendo que não aceitamos esse argumento. Tudo agora é previsível. Não é que vai acontecer depois de amanhã. Mas é previsível porque daqui para frente todo evento climático vai ser extremo. Não é mais como antigamente, que isso acontecia a cada dez anos." E acrescenta: "É um dever geral de cautela que precisa estar previsto".
Ressarcimento ao consumidor
Na tarde de segunda (14), Damous anunciou que o governo iria cobrar da Enel o ressarcimento dos prejuízos causados pelo apagão em Sao Paulo. O ministro da AGU (Advocacia-Geral da União), Jorge Messias, disse que estuda a possibilidade de apresentar uma ação coletiva contra a empresa.
Questionado sobre a possibilidade de ações como essas prosperarem, Damous respondeu que esses instrumentos são pouco utilizados no Brasil, mas podem ser feitos. E, como a paralisação do serviço atingiu a cidade toda e moradores de todas as classes sociais, a pressão sobre a empresa será maior.
O secretário defende o fim da concessão ou uma intervenção administrativa por parte da Aneel.
"A questão é: a Aneel pode promover uma intervenção administrativa, que é um passo drástico, porém menos drástico do que cassar a concessão. Nós recomendamos isso no processo do ano passado."
O contrato deveria ter sido feito de forma mais rígida, afirma. "No nosso governo não tem mais privatização. O problema é que não resta mais nada para privatizar, já foi tudo privatizado. Mas tem a renovação, então, não renova."
A CGU (Controladoria-Geral da União) enviou um ofício à Aneel informando que vai fazer uma auditoria das ações sobre a fiscalização da Enel em São Paulo durante os apagões de 2023 e 2024. O resultado dessa auditoria também pode provocar alguma punição à agência e à Enel.
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