Natália Portinari

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De Dilma a Bolsonaro, Congresso inverteu a lógica do toma lá, dá cá

Na última década, o Brasil passou por um processo de concentração de poder no Congresso que culminou, do ponto de vista do Executivo, em um dos orçamentos mais engessados do mundo para um regime presidencialista.

Modificações em série na legislação inverteram a lógica do fisiologismo — o toma lá, dá cá — que reinava desde a promulgação da Constituição de 1988, levando ao cenário de hoje, em que R$ 49 bilhões dos R$ 251 bilhões previstos em investimentos em 2024 (19%) são destinados a emendas parlamentares.

Como citaram Hélio Tollini e Marcos Mendes em artigo na Folha, é um patamar diferente de outros países em que há emendas parlamentares, onde elas não chegam nem a 1% da verba discricionária.

Desde a redemocratização, de José Sarney até o segundo mandato de Lula, sucessivos governos mantiveram a governabilidade — ou seja, conseguiram votos — distribuindo os ministérios entre os partidos da base com a chamada "porteira fechada", com controle total das siglas sobre as pastas.

Nas gestões petistas, parlamentares do PL, de Valdemar Costa Neto, tiveram atendimento privilegiado no Ministério dos Transportes. O PP controlou por anos o orçamento do Ministério das Cidades. O PC do B detinha o Esporte, e assim por diante, até se formar a maioria no Congresso em cada gestão.

Com a crise econômica de 2015 e um consequente corte drástico no orçamento desses ministérios, somados ao enfraquecimento de Dilma, congressistas antes agraciados pelas "porteiras fechadas" passaram a procurar uma outra solução para atender suas bases eleitorais.

Orçamento impositivo

Foi nesse contexto que o Congresso aprovou, em 2015, a Emenda Constitucional 86, prevendo a execução obrigatória de emendas parlamentares individuais. Foi criado o Orçamento impositivo.

Antes, era comum que o governo atrasasse o pagamento de emendas de parlamentares da oposição em vários anos. Mas deixar o pagamento para o ano que vem deixou de ser possível.

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Quando Michel Temer assumiu a presidência após o impeachment, seus auxiliares constataram que era preciso pagar uma tarifa mais alta do que antes pela aprovação de propostas na Câmara e no Senado.

Eliseu Padilha, ministro da Casa Civil de Temer, criou então as planilhas de "verbas extras" para aliados, que funcionavam de forma análoga ao orçamento secreto. Nesse momento, a negociação política saiu dos ministérios e foi para o Palácio do Planalto.

Em 2019, primeiro ano de governo Bolsonaro, essa prática continuou. No final do ano, porém, o Congresso conseguiu impor uma transformação completa na lógica da barganha com o Executivo.

Foi aprovada a PEC das transferências especiais, as emendas Pix, que permitem que parlamentares transfiram dinheiro para seus estados e prefeituras sem nenhum projeto específico, e sem nenhum rastro perante o governo federal de como o dinheiro será usado.

Além disso, o orçamento de 2020 foi aprovado com emendas de relator, que ficaram conhecidas como orçamento secreto. O relator daquele ano, o deputado Domingos Neto (PSD-CE), ganhou poder de ditar diretamente a distribuição de cerca de R$ 20 bilhões no orçamento.

O volume de recursos, que correspondia ao dobro do que estava previsto em emendas parlamentares individuais naquele ano, incomodou o então ministro da Economia, Paulo Guedes, e outros titulares de pastas na Esplanada de Ministérios. Mas o Congresso venceu a briga.

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A divisão dessa verba foi negociada com os presidentes da Câmara e do Senado e com os líderes partidários, garantindo que parlamentares influentes irrigassem seus redutos eleitorais com recursos.

A maior vitória do Executivo, nos anos Bolsonaro, foi ter conseguido impedir que as emendas de relator se tornassem impositivas, como queria o Congresso. Dessa forma, o governo conseguiu usar essas emendas para barganhar, como acontecia com as "verbas extras".

Após a proibição do orçamento secreto pelo STF, no final de 2022, o governo Lula fez um acordo com o Congresso para "reservar" alguns bilhões nos ministérios informalmente para aliados.

Esses pagamentos, em 2023, foram feitos através do "RP 2", jargão orçamentário para a verba controlada pelos ministros. O Congresso considerou que esse método foi mais moroso e favoreceu aliados de Lula. No final do ano passado, o clima era de insatisfação.

Por isso, para 2024, foram ampliadas as emendas de comissão, agora sob a mira do STF. São emendas indicadas pelos presidentes de comissões que, por sua vez, são alçados aos seus cargos em acordos políticos com os presidentes da Câmara e do Senado.

O orçamento de verbas extras na saúde, o mais cobiçado do Congresso, foi transferido do "RP 2" para as emendas de comissão, "RP 8", neste ano. Foi o sinal de que essas seriam as novas emendas de relator, ou seja, o método prioritário para a barganha política, com outro nome.

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Reunião com o STF

Considerando que essas emendas estavam funcionando como o orçamento secreto de Bolsonaro, o ministro do STF Flávio Dino determinou a sua suspensão, assim como a das emendas Pix e do restante das emendas individuais.

Os demais ministros do STF apoiaram sua decisão, em julgamento unânime, e decidiram se reunir com ministros do Executivo e com os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), nesta terça.

Na nota divulgada pelo Supremo após a reunião, não é abordado o problema da transparência das emendas de comissão que foram executadas até agora. São citadas apenas regras para estipular como será feito daqui em diante.

Ficou definido que essas emendas "serão destinadas a projetos de interesse nacional ou regional, definidos de comum acordo entre Legislativo e Executivo, conforme procedimentos a serem estabelecidos em até dez dias".

Ao contrário da ministra Rosa Weber, que determinou que o Congresso divulgasse quem se beneficiou com as emendas de relator, o Supremo, dessa vez, agiu apenas para ditar regras para o futuro.

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Na prática, o governo Lula ganhou influência sobre o Orçamento de 2025 e fará uma gestão compartilhada das emendas de comissão. As emendas Pix também terão um rito distinto e precisarão ficar vinculadas a finalidades específicas.

A trégua, porém, é apenas temporária. Como as regras de emendas são ditadas ano a ano, Legislativo e Executivo precisarão negociar novamente em breve.

Nenhuma medida de transparência foi determinada para indicar quem são os padrinhos de R$ 10 bilhões em emendas de comissão empenhados neste ano, ou sobre os R$ 6,8 bilhões que haviam sido liberados no ano passado, ou sobre os R$ 7,9 bilhões em "RP2" aproveitados do antigo orçamento secreto.

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