Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Fotógrafo desafia a fixação da vida de pessoas negras em imagens de dor
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A ampliação do debate sobre o racismo na cena pública tem alargado os canais de denúncias. Apesar da importância de tornar visível o que é inaceitável, precisamos estar atentas sobre os efeitos da produção incessante de imagens que, mesmo à revelia de suas intenções, colaboram para fixar a violência e a morte como as únicas possibilidades de contar sobre as experiências negras.
Não se trata de negar os acontecimentos, mas de frisar que, além da ameaça real à sobrevivência, pessoas negras enfrentam ataques que colocam em risco suas existências subjetivas, o que envolve suas identidades, suas histórias e seus vínculos.
Numa articulação entre a história e a psicanálise é importante pontuar que o imaginário social e o psiquismo humano estão entrelaçados. Por isso, em termos de agenciamentos políticos, precisamos tornar disponíveis imagens, narrativas e afetos sobre as existências negras que mobilizem a pulsão de vida. A esse respeito, a arte desempenha uma função de destaque.
Um exemplo são as imagens produzidas pelo fotógrafo Walter Firmo.
É provável que você já tenha visto fotografias de Firmo, mas, talvez, pela força do racismo que invisibiliza a produção de conhecimento negra, nunca tenha pensado na possibilidade de essas imagens terem sido produzidas por um fotógrafo negro.
Carioca de Irajá, Walter Firmo é filho do casal paraense Maria de Lourdes Guimarães da Silva e José Baptista da Silva. Ela branca e ele negro. Na adolescência, depois de ganhar de presente de seu pai uma Rolleiflex, Firmo se interessou pela fotografia, retratando a família e os colegas de bairro e escola.
O fotógrafo, que hoje tem 85 anos, iniciou sua carreira no fotojornalismo na década de 1950 no jornal Última Hora. Desde então não parou, trabalhou em diversas redações: Jornal do Brasil, Revista Realidade, Veja, Manchete, entre outras, ganhou prêmios de jornalismo e de fotografia, publicou livros, fez inúmeras exposições, foi diretor do Instituto Nacional de Fotografia e da Funarte. Uma vida intensa de trabalho, deslocamentos e encontros afetivos.
Valendo-se de uma longeva trajetória profissional, Firmo documentou práticas culturais e cotidianas de pessoas negras no Brasil e fora dele, chegando à produção monumental de 140 mil imagens, cujo acervo encontra-se sob a guarda do Instituto Moreira Salles (IMS) no regime de comodato por 10 anos.
Desde o ano passado, sua exposição "No verbo do silêncio, a síntese do grito", organizada pelo IMS e o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), circulou por São Paulo e Rio de Janeiro, e chegou em 18 de abril de 2023 em Brasília no CCBB.
Na capital federal, quando visitei a exposição, além dos retratos famosos de Clementina de Jesus, Pixinguinha, Dona Ivone Lara, Cartola, Candeia, Ismael da Silva, Madame Satã e Arthur Bispo do Rosário, chamou-me atenção a expressividade poética das fotografias de pessoas negras anônimas.
Firmo confere àquelas existências a dignidade de viver situações cotidianas e prosaicas. A exemplo da série em preto e branco produzida no início dos anos 2000, na praia de Piatã, Salvador (BA). Aqui somos arrastadas pela beleza de ver gente que, cotidianamente, é alvo da perseguição racista desfrutando da vida. São cenas de pai brincando com filho, casais de namorados, crianças sendo crianças.
Conforme escreveu a curadora Janaina Damaceno no catálogo da exposição, Firmo "projeta realidades possíveis, destinos possíveis para cada um de nós". A esse respeito, o próprio artista reflete: "A função da informação jornalística não se resume apenas a uma informação rudimentar do infortúnio, da desesperança, do fracasso. Ela pode e deve se associar, fotograficamente, ao enriquecimento lícito decorrente do ato de se apoderar do belo, do formoso, do gentil."
A identificação com as imagens surge não apenas pela sensação de familiaridade com as pessoas fotografadas, mas também pela presença dos objetos, do estilo das construções, das roupas usadas. A fotografia abre a possibilidade de narrar histórias. Por meio da construção desse repertório de imagens, Firmo e a circulação de sua exposição reafirmam a fotografia como instrumento de letramento antirracista. Sua obra produz outros imaginários, toma a palavra e enfrenta a morte.
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