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As lutas pela vida e pela saúde das mulheres negras

A leveza e luminosidade daquela tarde de 15 de janeiro de 2014 realçavam a consternação da multidão que chegava ao Cemitério da Saudade para acompanhar o cortejo de despedida de uma das mulheres mais conhecidas em Belo Horizonte nos fóruns de luta por cidadania. Dona Valdete Cordeiro, nascida em 7 de setembro de 1938, em Barra, na Bahia, transformara a vida de muita gente através das várias frentes de atuação em que participou como liderança comunitária no Alto Vera Cruz, na zona leste da capital mineira.

Sua partida relativamente precoce surpreendeu a maioria das pessoas que ali estavam, afetuosamente, prestando homenagem a ela e à sua família. Cerca de dois anos depois foi instituído na cidade, pela Lei No 10.969 de 13 de setembro de 2016, o 25 de Julho - o mesmo em que se celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha -, como "Dia Municipal da Mulher Negra Dona Valdete da Silva Cordeiro".

*Josemeire Alves Pereira é pesquisadora, professora e gestora cultural, atuando nesta função junto à Associação Cultural Casa do Beco, em Belo Horizonte (MG). É doutora, mestre e licenciada em História (Unicamp). Integra a Rede de Historiadorxs Negrxs, o GT Emancipações e Pós-Abolição, da Associação Nacional de História e o Grupo Africanidades-BH.

Arte e saúde integral

Um dos frutos mais conhecidos de seu trabalho foi o Grupo Cultural "Meninas de Sinhá". Formado por mulheres acima dos 50 anos, ele foi criado a partir da iniciativa de Dona Valdete que, ao perceber a alta incidência de uso de medicamentos para tratamento de doenças físicas e psíquicas entre suas companheiras, passou a reuní-las para, através da experiência lúdica de rodas de conversa e ciranda em que rememoravam histórias e cantigas de sua infância e juventude, cultivassem um espaço de cuidado e cura emocional que, desde 1996, vem transformando suas vidas.

As histórias de agências de mulheres negras em favor do bem viver, como nossas histórias já contam, não são raras. No Brasil Colonial, inclusive no Curral del Rei, mesmo território que depois foi transformado na atual capital do estado de Minas Gerais, já no século XVIII, parteiras, benzedeiras, curandeiras mobilizavam saberes e tecnologias ancestrais africanas e afro-indígenas de cuidados com a saúde de comunidades inteiras.

Conforme aponta a antropóloga Mariana Ramos de Morais, no livro Nas Teias do Sagrado: Registros de religiosidade afro-brasileira em Belo Horizonte, ao Calundu da liberta africana Francisca Correia e de seu companheiro Manoel da Rocha, cativo, recorriam os moradores da Fazenda do Bento Pires (atuais regiões da Pampulha e Venda Nova, em Belo Horizonte), em busca de cura para males físicos e espirituais diversos, por meio da administração de ervas e rezas.

Práticas e conhecimentos como estes foram condenados pelo Santo Ofício e criminalizadas, especialmente a partir do século XIX, no contexto de crescente racialização e secularização do controle sobre as populações indesejadas nos projetos de cidade e de nação que se consolidavam no Brasil. De todo modo, tal como o demonstram as pesquisas da historiadora Tayane Oliveira, a despeito da repressão, conhecimentos como os da benzedura "se mantêm em uma trilha que ecoa através de gerações".

Mas, retomando o foco das lutas e práticas coletivas contemporâneas mobilizadas por mulheres negras em favor da saúde, é fundamental ter presente a participação de mulheres como Dona Valdete, Dona Miltes, Maria Helena Cunha, Dona Lourdes de Souza Lopes (lideranças negras comunitárias em Belo Horizonte), e muitas outras que, em diversas regiões do país, ao longo dos anos 1980 e 1990, se organizavam em assembleias comunitárias e reivindicavam dos governos, políticas que melhor atendessem às multidões que não tinham acesso efetivo aos direitos de cidadania.

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A construção do SUS (Sistema Único de Saúde) teve participação fundamental dessas lideranças, que constituíam interlocução com parceiros diversos - estudantes universitários, partidos políticos e intelectuais - e fomentavam, a partir das bases, a construção da política de saúde no Brasil que, a despeito de ter se tornado referência internacional, precisa ser sempre defendida, já que está sempre sob ameaça, frente aos interesses privados, e às necessidades de aprimoramento. Necessidades tais como as de melhor monitoramento das instituições privadas e/ou públicas de saúde, como o que atesta a experiência trágica - mas não incomum - que levou ao falecimento de Alyne da Silva Pimentel Teixeira, em decorrência de negligência médica.

O Caso Alyne Pimentel: morte materna e racismo obstétrico

Alyne da Silva Pimentel Teixeira, mulher negra de 28 anos, moradora da Baixada Fluminense, estado do Rio de Janeiro, era casada, mãe de uma menina e grávida de seu segundo filho, quando faleceu, no dia 16 de novembro de 2002, cinco dias após ingressar no Hospital Nossa Senhora da Glória, com náuseas e fortes dores abdominais.

Ali ela foi medicada com analgésicos e liberada a voltar para casa, precisando retornar ao hospital dois dias depois, quando se verificou a morte do feto. Tendo vivenciado o parto de um natimorto, Alyne ainda esperou por 14 horas, em condições desumanas, para que a placenta fosse removida, tendo seu quadro de saúde agravado. Precisou ser levada ao Hospital Geral de Nova Iguaçu, mas a equipe médica que a atendeu alegou não poder fazer nada, diante da ausência de prontuário, que não fora encaminhado junto com a paciente. Alyne faleceu um dia depois.

O caso foi denunciado, por sua mãe, Maria de Lourdes da Silva Pimentel, ao Comitê pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) das Nações Unidas que, em 11 de agosto de 2011, decidiu pela condenação do Estado brasileiro como responsável pela morte materna de Alyne.

A pesquisadora Valda de Fátima da Silva, que analisou o acontecimento na dissertação "Mortalidade Materna no Brasil: 20 anos depois da morte de Alyne Pimentel", destacou que na decisão do CEDAW reconheciam-se fortemente os elementos de discriminação racial e por condição socioeconômica de Alyne, caracterizando o descaso e a sucessão de negligências que a levaram a óbito. O caso tornou-se emblemático por tratar-se da primeira responsabilização internacional de um Estado por mortalidade materna e tem repercutido junto a movimentos pela saúde reprodutiva e sexual, com foco especial na saúde das mulheres negras.

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Mas, apesar das recomendações feitas ao Brasil pelo CEDAW, por ocasião da condenação pela morte de Alyne Pimentel, dados recentes compilados pelo Portal Catarinas apontam que a taxa de mortalidade materna no Brasil está bem acima da meta nacional de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs).

Segundo a Fundação Abrinq, em 2020, 67,9 mortes por cada 100 mil nascidos vivos; além disso, durante a Pandemia de Covid-19, até maio de 2021, de acordo com Dossiê realizado pela Fundação Criola, eram de mulheres negras 65,93% das 1.176 mortes maternas registradas.

Neste mês em que celebramos a vida e as lutas das mulheres negras latino-americanas e caribenhas, as memórias de Alyne Pimentel e Dona Valdete Cordeiro convocam ao fortalecimento do compromisso de governos e da sociedade brasileira em favor de política de saúde das mulheres que não banalize a vida dessas mulheres.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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