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Opinião

História da segurança pública no RS mostra caráter racial da militarização

Como o letramento histórico nos auxilia a compreender a segurança pública no Brasil? Você já se perguntou sobre como foram estabelecidos os parâmetros para a definição das nossas forças policiais como imprescindíveis no nosso cotidiano? Quais são os papéis delegados e cumpridos por elas?

Atentar para esses questionamentos não apenas nos permite historicizar a instituição policial, mas também auxilia na compreensão da demanda pelo fim da militarização das polícias. Convido a quem nos lê a olhar para a segurança pública para além dos estados de São Paulo e da Bahia. O convite se justifica pelo propósito de compreendermos as ações estaduais como parte de um projeto que é nacional, cujas implicações alcançam a sociedade brasileira como um todo.

A Constituição, em seu artigo 144, informa que "a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio". Acrescenta ainda que é formada pelas polícias federal; rodoviária federal; ferroviária federal; civis; militares e corpos de bombeiros militares; penais federal, estaduais e distrital.

A definição enuncia que segurança pública não é sinônimo de uma única polícia. E nem todas se enquadram nos nomes referidos no artigo. Por exemplo, no Rio Grande do Sul, a polícia militar é denominada de brigada militar, enquanto seus agentes são referidos como brigadianos. Isso é uma demonstração de que nada é naturalmente estabelecido e que a complexidade da instituição policial é expressão do que elaboramos culturalmente.

Essa força, em específico, constituiu-se em 1893. No entanto, advém de uma estrutura constituída ainda durante a escravidão, como foi contextualizado por Itan Cruz semana passada em "Como os anos finais da escravidão moldaram a segurança pública no Brasil".

Aqui no Sul não foi diferente. Os jornais preservam notícias dessa natureza, como a veiculada em 30 de janeiro de 1886 no jornal Diário de Pelotas, que informava, sob o título "Arbitrariedade Policial", que "ontem pela manhã, no mercado público, por ocasião de ir ali efetuar umas compras, foi preso pela polícia, como recruta, um menor de 10 anos de idade criado pela parda Januário de tal. Não se trata de um vagabundo, pois o menor em questão é morigerado e tem ocupação na casa da pessoa que o criou."

A polícia em questão era a força policial, antecessora da Brigada, e marcada por uma prestação de serviço em favor dos proprietários de escravizados. E, não só, em favor da própria escravidão de fato, independente do fato dos recrutados serem livres, importando apenas serem pardos ou negros e pertencentes aos grupos subalternos, como as pesquisas históricas de Caiuá Al-Alam e Claudia Mauch elucidam.

A Brigada Militar foi criada em tempos de liberdade, no contexto da Guerra Civil Federalista (1893-1895) e, ao envolver-se no conflito, enunciava a marca daquilo que hoje é definido como militarização. E que, aos moldes do que nos apresenta o dicionário de Favelas Marielle Franco, define-se pela transformação de qualquer espaço em "campo de batalha" (principalmente rurais, pelo menos até a 2º Mundial), uma governabilidade assentada no uso de armas para combater crimes ou reprimir protestos; tecnologias de controle como forma de patrulhamento e uma referência de moral frente à população. O que, por sua vez, se reflete também nas estruturas mentais que solidificaram a sociedade brasileira. Ainda que esteja resguardado na nossa Constituição que o papel da polícia seja o de preservar a ordem pública, as pessoas e o patrimônio, fica explícito que cada um desses itens não tem um significado universal.

O caso dos homens errados

Para quem nos acompanhou até aqui não ficar perdido no tempo, e tão pouco pensar que estamos falando de uma mesma coisa que se perpetuou no tempo, apresento-lhes agora a perspectiva de continuum desenvolvida pela historiadora Beatriz Nascimento. Assim, entendo que estamos frente a um continuum em termos estruturais. Houve mudança, mas o entendimento de que a polícia deve ser militarizada foi mantido em detrimento da proteção da vida, dos próprios sujeitos que atuam junto à instituição inclusive. Para consolidar essa perspectiva, vamos avançar para a segunda metade do século XX.

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Um assalto realizado em um supermercado em Porto Alegre no dia 14 de maio de 1987 foi utilizado como justificativa para dar fim à vida do operário, filho, irmão e marido Júlio Cesar Pinto. Aquele homem negro de 30 anos foi mais uma das tantas vítimas da letalidade policial. Confundido com um dos assaltantes, foi preso e assassinado com um tiro pela Brigada Militar. O caso foi denunciado por familiares e ativistas dos movimentos sociais locais e contou com o auxílio das provas produzidas pelo fotógrafo Ronaldo Bernardi, que registrou tanto o aprisionamento de Júlio quanto a chegada de seu corpo já sem vida, carregado por brigadianos, uma hora depois do primeiro registro.

Frame do filme O Caso do Homem Errado. Na imagem, a viúva Juçara de Melo Pinto segura o cartaz com a fotografia de Júlio Cesar de Melo Pinto.
Frame do filme O Caso do Homem Errado. Na imagem, a viúva Juçara de Melo Pinto segura o cartaz com a fotografia de Júlio Cesar de Melo Pinto. Imagem: Reprodução

Conhecido como "Caso do Homem Errado", o episódio teve ampla divulgação na mídia e contou com discussões acaloradas nas rodas de ativismo social, mas também na esfera jurídica. Houve condenação e expulsão dos brigadianos da corporação e a demonstração de como a militarização permanecia perversa, aos moldes do que havia ocorrido com aquele jovem menino negro de Pelotas cerca de 100 anos antes.

O que, com o avanço das discussões em torno da morte de um perfil muito bem delimitado no Brasil, a saber homens negros empobrecidos, resultou também na realização de um documentário, que reproduziu em seu nome a forma como o caso ficou conhecido acrescido do questionamento "Existe homem certo?" (2017). A pergunta feita pela diretora Camila de Moraes também nos ajuda a atentar para a importância de assegurarmos um lugar de letramento histórico quando observamos os sujeitos envolvidos e alcançados pela segurança pública.

Observar a segurança pública no Brasil exige atenção com as complexidades. Acompanhamos os casos envolvendo assassinatos de agentes da segurança pública, sujeitos de direitos e trabalhadores que serviam junto aos postos hierárquicos mais baixos. Vemos também as histórias dos sujeitos assassinados pela polícia sob a justificativa de controle às drogas, muitos também trabalhadores que nem sequer tinham ficha criminal, e com certeza todos sujeitos de direitos. Os dois grupos atingidos são compostos majoritariamente por sujeitos pretos e pardos. E a tragédia revive as 564 mortes de maio de 2016, na capital e Baixada Santista denunciadas até hoje pelas Mães de Maio.

Olhar tanto para São Paulo quanto para a Bahia, agregando a esse exercício de letramento a experiência da Brigada Militar (RS), permite apontar para apenas alguns dos fios possíveis de serem puxados desse emaranhado que tem marcado nossa sociedade e tirado a vida de tantas pessoas pertencentes a um perfil muito aproximado dentro de um continuum que decide quem são os homens errados para viver, ao invés de assegurar nossas vidas e não tratar muitas dessas perdas como meros efeitos colaterais.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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