Por que sabemos sobre a guerra em Israel, mas não sobre os xokleng?
O choque tomou conta de nós no último sábado (7). Violência e caos deram o tom das notícias. Mas não estou me referindo ao conflito bélico entre Israel e Palestina. E sim ao que acontece em Santa Catarina (SC), mais especificamente com os indígenas xokleng, e também com os pataxó, no sul da Bahia, onde uma criança de apenas 5 anos foi assassinada em Coroa Vermelha.
O que está por trás da violência que atinge grupos indígenas e não poupa sequer as crianças? Você viu essas notícias dominarem a pauta da grande mídia?
Esse mês a coluna Presença Histórica confronta dilemas relacionados às crianças negras e indígenas. Amanhã é o dia em que muitas famílias irão suspender os problemas cotidianos para viver o mágico universo infantil. Mas, nem todas poderão fazer isso porque a violência tem sido exímia em limitar as existências de nossas crianças, principalmente se negras e indígenas.
Convido você a refletir a partir de algumas camadas da história dos xokleng, assim politicamente definidos, mas que autonomeiam-se como laklanõ, ou seja, "gente do sol" ou "gente ligeira".
Santa Catarina é terra indígena
A manutenção do território é fundamental para os indígenas, é nele que a vida em comunidade pode se dar. Cabe aqui a afirmativa do mais recente imortal da Academia Brasileira de Letras, o indígena Ailton Krenak: uma criança que nasce numa aldeia não tem uma residência particular, ela nasce no seio de um coletivo. Buscar compreender a raiz da violência e seus desdobramentos inevitavelmente nos leva aos conflitos pela terra e seus impactos na experiência de vida das comunidades.
Em SC não é diferente e não se resume a episódios isolados.Talvez o que difira seja o pouco conhecimento que costumeiramente se tem acerca da diversidade étnico-racial nesse estado. A pesquisa histórica tem demonstrado como o início da imigração européia, sobretudo alemã e italiana, coincide e se relaciona com o início sistemático dos conflitos contra os povos indígenas.
Data de 1829 a colonização alemã na então província de Santa Catarina, com a criação da colônia São Pedro de Alcântara, próxima do que conhecemos hoje por Florianópolis. Não por acaso o governo provincial instituiu, em 1837, a "Comissão de Batedores do Mato", também conhecida como "Patrulha de Bugreiros", ou simplesmente "Bugreiros", com o objetivo de combater a "selvageria dos bugres", forma pejorativa de referência às pessoas indígenas. E não se opunha ao assassinato de homens indígenas, bem com ao rapto e apreensão de mulheres e crianças, como destaca a pesquisa da historiadora Luisa Wittmann.
A primeira colônia não prosperou e alguns colonos foram em busca de novas terras, chegando ao hoje denominado Vale do Itajaí, ocupado então pelos guarani e xokleng, como nos demonstra a pesquisa da historiadora laklãnõ/xokleng Walderes Coctá Priprá. O processo de ocupação pelos colonos não se deu sem conflito, e, mais uma vez, o que estava em xeque era o território.
Em 1850 o Império decreta a Lei de Terras, que eleva a terra à condição de propriedade privada. Especialmente negros e indígenas que viviam em terras coletivas desprovidas de registro viram-se excluídos desse processo e não tardou para que fossem vistos como ocupantes ilegais.
Uma verdadeira prática de guerra instituída pelo Estado contra os indígenas locais e em favor dos colonos sobreviveu nesses termos até o início do século XX. Mas ao longo desse período, e mesmo após, outras estratégias solidificaram o processo de exclusão dos indígenas.
Autoridades estatais elaboraram discursos sobre o "problema dos bugres", entendendo os ditos "bugres" como problemas em si mesmos, o que justificava o financiamento dos Bugreiros. Construiu-se ainda um discurso de fortalecimento da imagem da região como "Vale Europeu". Que prevalece até hoje, e se sustenta tanto na valorização do imigrante europeu e de seus descendentes, quanto na supressão da referência à existência de outros grupos étnico-raciais, como os indígenas.
Essa é a mesma região que hoje é conhecida pela presença alardeada como exclusiva de descendentes de imigrantes europeus. E que tem na cidade de Blumenau um grande exemplo dessa construção de visibilidade de uns e invisibilidade de outros, anualmente reafirmado pela Oktoberfest - um grande festival de tradições germânicas cujo produto por excelência é a cerveja e que ocorre desde 1984, tradicionalmente no mês de outubro.
A atualização da violência contra os xokleng
Essa exclusão está no cerne das discussões do marco temporal movido por uma contestação do estado de SC, sob liderança atual de Jorginho Mello (PL), em defesa de agricultores que ocupam o Vale do Itajaí, mas cujas terras são originalmente dos xokleng.
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Quero receberAs relações que já não eram amistosas entre agricultores e indígenas ficaram ainda piores com a retomada das discussões sobre o marco temporal esse ano. O deputado federal Rafael Pezenti (MDB-SC), por exemplo, narrou um vídeo em que refere "guerra de sangue" caso o marco fosse derrubado pelo STF, o que de fato aconteceu em setembro.
Semana passada, por conta das fortes chuvas que alcançam a região, noticiou-se a suspensão de alguns dias da Oktoberfest. Dentre as medidas tomadas pelas autoridades para resguardar a população estava o fechamento de uma barragem localizada em José Boiteux, que atravessa a Terra Indigena Xokleng Laklano-Ibiram.
É a maior barragem do estado e está sem operação há cerca de dez anos. Uma ação emergencial de fechamento das comportas sem preparo pode levar a uma catástrofe semelhante ao que aconteceu em Brumadinho (MG), em 2019. Porém, firmou-se um acordo entre lideranças xokleng e a defesa civil para permitir o fechamento da barragem e resguardar as aldeias. O acordo não teria sido cumprido, o que o governo estadual contesta. Os indígenas ocuparam o entorno da barragem e o confronto com a polícia, no dia 7, deixou feridos.
Seria um prelúdio do "banho de sangue" apregoado por lideranças políticas de SC? Fato é que os conflitos e a insegurança indígena permanecem, com a inundação de aldeias xokleng desde o dia 7, em um exemplo explícito de racismo ambiental, frente a falta de ações para contornar a situação como acordado.
A emergência indígena
Na outra ponta do Brasil, também no dia 7, em uma festa relativa ao Dia das Crianças, uma criança indígena Pataxó foi assassinada pela polícia da Bahia (BA), estado governado por Jerônimo Rodrigues (PT). Tanto em SC quanto na BA, a emergência é explicitamente indígena, frente à violência perpetrada pelo Estado, como reiteradamente tem denunciado a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).
Estamos observando uma violência racista que limita a existência de crianças, ceifando suas vidas ou provocando traumas por meio do medo constante (e) da perda de sua comunidade. A violência é tanta que muitas dessas crianças sequer são lidas pela sociedade como passíveis de dor, lamento e luto.
A grande mídia tem dedicado poucas linhas ou minutos, quando muito, ao conflito em SC e na BA. As informações são divulgadas sobretudo por canais de comunicação de lideranças indígenas, como a Juventude Xokleng e o ativista Tukumã Pataxó.
Tudo isso é parte de um processo de extermínio de longa duração, que adquire contornos de possibilidade também pela omissão dos veículos de mídia, que confere atenção qualificada aos ataques que atingem o Oriente Médio, mas não o faz com o que ocorre sistematicamente no território nacional.
É preciso incorporar um antirracismo que não seja de ocasião e efetivamente combater o apagamento sistemático de histórias e existências múltiplas indígenas, que acabam chegando para a grande sociedade quando apenas a morte e a precariedade as definem.
Por último, mas não menos importante, nem os malabarismos retóricos são capazes de esconder que as estruturas governamentais seguem impondo uma guerra racial cotidiana aos indígenas por meio do ataque aos seus territórios. É nosso dever cidadão dar um basta nisso em todas as esferas e fazer valer para todos o que diz a canção, aqui livremente acionada em diálogo com o significado de Laklanõ: "o sol há de brilhar mais uma vez".
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