Moraes x Nunes Marques: polarização política e jurídica veste a toga no STF
Dois amigos, ambos profissionais do Direito, conversam. Um deles segredou estar seduzido pelos dotes físicos da vizinha, uma jovem mulher casada. A reação do outro foi imediata ao lembrar os mandamentos recebidos por Moisés, "não cobiçar a mulher do próximo". De bate-pronto, o colega respondeu: o marido trabalha numa cidade distante 500 km de casa e só volta no final de semana — não se trata da mulher do próximo.
Essa é uma piada conhecida no meio jurídico e usada para animar aulas nas faculdades, mas mostra como os bacharéis em Direito interpretam diversamente os textos legais. Por bacharéis, entenda também aqueles que ocupam uma cadeira no STF (Supremo Tribunal Federal) com título de ministro.
Hoje, depois dos votos dos ministros Alexandre de Moraes, relator, e de Nunes Marques, revisor, o cidadão não familiarizado com as nuances do Direito saiu com uma dúvida se de fato algo grave aconteceu naquele 8 de janeiro, em Brasília.
Para Moraes, deu-se o chamado "crime coletivo", também denominado de "delito de multidão (multitudinário)". Com intenções bem claras e determinadas, com condutas a tipificar os crimes voltados à abolição ao Estado de Direito, golpe de Estado, associação delinquencial armada e duas modalidades de danos ao patrimônio da União (o comum e o tombado cultural e artisticamente).
Moraes aplicou a Aécio Lúcio Costa Pereira, que mora em São Paulo e é ex-funcionário da Sabesp, desligado após quase 30 anos de trabalho depois dos acontecimentos do dia 8 de janeiro, penas que somam 17 anos de reclusão e multa. Talvez tenha lembrado os livros básicos de direito penal, aqueles que ensinam ter a norma também finalidade de prevenir delitos. Em síntese, forçou a mão nas penas.
O réu Aécio recebeu pena de multa e, ainda, foi condenado a indenizar o valor mínimo pecuniário de R$ 30 milhões por danos material e moral. Se for curioso e olhar a lei, Aécio poderá até infartar. Isso porque descobrirá ser devedor solidário. E solidário pelo todo, lógico. Se for inadimplente, pagará quando puder.
Por outro lado, para o ministro Kassio Nunes Marques, só ocorreram, na sua canhestra visão, os delitos de dano. A pena foi individualizada em 2 anos e 6 meses, em regime aberto. Poderá cumprir em casa, sair para trabalhar e se recolher durante a noite.
Até agora, extraída a raiz quadrada e os nove fora, pode-se concluir que a polarização política-jurídica vestiu toga e já é notada no STF.
O voto de Moraes é irrespondível quanto à tipificação dos crimes de tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado de Direito. Isto sem perder de vista o mencionado "delito coletivo".
De fato, tratava-se de delito coletivo. A multidão atacou em bloco, tomada por ódio, cólera e inconformismo. Entre a turba existia, e está bem comprovado, o mesmo vínculo psicológico, a intenção de lograr o objetivo atentatório à Constituição: um golpe.
Numa imagem criada pela doutrina penal, verificou-se o "efeito manada". No caso, seres humanos imitam animais selvagens. Se vivo fosse, Átila, o rei dos hunos, contrataria esse pessoal do 8 de janeiro.
Moraes, entretanto, deixou a toga de juiz e voltou a usar a beca do Ministério Público. O espírito de parte acusadora, e o peso da fama de xerife do STF, subiu-lhe à cabeça.
Condenar por associação delinquencial com armas brancas (não explosiva: bolinhas de gude, canivetes, espetos etc.) é esquecer exigência básica do tipo penal: organização estável e permanente. Não há prova alguma de estabilidade e permanência, ainda que tenha Aécio pertencido a um grupo Brancaleone chamado de Patriotas.
O pior de Moraes foi exagerar na individualização das penas. Esqueceu da máxima latina, "summum jus, summa injuria" (o exercício do direito em excesso causa injúria excessiva).
Kassio Nunes Marques, no voto de revisor, não viu nenhum objetivo golpista. Nem ele, nem Bolsonaro, frise-se.
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Quero receberPelo voto de Nunes Marques e numa correta chave interpretativa, os participantes queriam apenas protestar e acabaram exagerando e passaram ao quebra-quebra. O ministro revisor não levou a sério o crime de multidão. Nem enxergou a tipificação de qualquer tentativa de abolição do Estado democrático ou de golpismo. Atenção: aí fez lembrar a piada acima mencionada.
Como o julgamento não terminou, Moraes e Nunes Marques poderão, por força de lei, mudar ou adaptar os seus votos.
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