PM que matou menino de 12 anos em SP tem outras 8 mortes na carreira
Resumo da notícia
- PM participou de sete ocorrências com nove mortes em SP entre 2011 e 2019
- Corregedoria apura possível excesso policial em morte de jovem
- Jovem que iria depor contra PM é espancado e desiste de denunciar
- Governo diz que cabo está em função administrativa
Desconhecido da população em geral, o cabo da PM (Polícia Militar) Thiago Santos Sudré, 40, é conhecido na periferia de São José dos Campos, no interior de São Paulo, sob a alcunha de Carioca e por ser ríspido contra suspeitos de crime contra o patrimônio.
Ele foi o responsável por atirar duas vezes contra Miguel Gustavo Lucena de Souza, 12, que estaria em um carro roubado em um parque de diversões da cidade, às 22h45 de 6 de setembro. O policial alegou à Polícia Civil e à Corregedoria da PM que agiu em legítima defesa.
O caso veio à tona após a mãe de Miguel denunciar à Corregedoria que o policial teria atirado contra seu filho depois de ele ter se rendido. O caso é investigado pelo órgão corregedor que também apurou, no passado, outras seis MDIP (Mortes Decorrentes de Intervenção Policial) em que o cabo Sudré estava envolvido, entre 2011 e 2019.
Nessas outras seis ocorrências, oito homens foram mortos. As idades deles variavam entre 17 e 46 anos, mas a dinâmica foi semelhante: houve suspeitas de roubo, tiroteios, suspeitos mortos e o policial sem ferimentos. Em nenhum caso o PM foi penalizado.
Segundo denúncia feita pela mãe de Miguel, Andreia Gonçalves Pena, 36, à Ouvidoria da Polícia, cerca de duas semanas antes de seu filho ser morto, o cabo Sudré foi até sua casa e afirmou: "Compra um caixão bem pequeno, porque, se eu pegar seu filho na rua de novo, vou matar".
A mãe afirmou que Miguel era dependente químico e que vendia balas em semáforos da região. Andreia relatou que o menino chegou a traficar drogas, mas que, depois de ter sido internado em uma casa de recuperação, deixou a criminalidade. No entanto, relatou que ele era perseguido pelo policial por seu passado no tráfico.
Ela disse que foi informada da morte de seu filho por uma vizinha. Ao chegar ao local, um policial disse a ela que ele estava conduzindo um carro, um Volkswagen Fox de cor vermelha, roubado e que havia atropelado "várias" pessoas.
No entanto, testemunhas teriam gritado, na sequência, que a versão policial era mentirosa: que Miguel estava no banco traseiro, desarmado e que desceu do carro com as mãos para cima. Não houve registros de ninguém atropelado na região.
As testemunhas disseram à mãe que Miguel foi atingido, ainda com as mãos para cima, próximo a axila. Depois, Andreia foi até a delegacia. Lá, encontrou o policial Sudré e afirmou a ele: "Parabéns, você conseguiu. Tô indo comprar o caixão". Ela relatou que ele retrucou: "Sua louca, boa coisa ele não era. O que tava fazendo em um carro roubado?".
Ainda segundo a denúncia de Andreia à Ouvidoria, ela continua sendo ameaçada pelo policial, que voltou ao seu apartamento, segundo narraram seus vizinhos. Na noite de 15 de setembro, ela teve seu apartamento invadido. A porta foi arrombada e os armários revirados. Numa parede, foi gravado com objeto pontudo os nomes dos seus filhos. O de Miguel, cruzado com um risco. A família mudou de bairro.
Andreia afirmou, também, que não é contra a Polícia Militar, mas que quer justiça para seu filho, que, dependente químico, precisava de ajuda. Ela nega que ele fosse ladrão ou assassino.
Miguel era negro, franzino e tinha 1,33 m de altura. Aluno na Escola Estadual José Frederico Marques, começou a fumar maconha com dez anos, o que desapontava a mãe, que é cuidadora de idosos, tem dois filhos mais velhos empregados no setor de aviação e é evangélica.
Para manter o vício, o garoto foi "recrutado" pelo tráfico de drogas da cidade como "aviãozinho" —vendedor de drogas em "biqueiras" da região. A reportagem apurou que um adolescente de 14 anos, que testemunhou a ocorrência e que iria depor na Corregedoria, foi espancado por um policial um dia antes de prestar depoimento. Com medo, ele desistiu de depor e não quis registrar as agressões.
Segundo o advogado Ariel de Castro Alves, conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) e que está acompanhando a família, "aparentemente, foi um assassinato planejado, premeditado e anunciado pelo policial autor do homicídio". "A sensação de impunidade dos PMs é tão grande, que os PMs ficam promovendo ameaças e perseguições contra a mãe da vítima."
Atendendo pedido do ouvidor Benedito Domingos Mariano, a corregedoria-geral da PM instaurou investigação. "Estive em São José e obtive mais detalhes do caso. Solicitei da Polícia Técnica laudos do local, exames de balística das armas e laudo necroscópico. Assim que receber, terei condições de fazer um relatório preliminar para anexar à investigação", disse Mariano.
De acordo com o Boletim de Ocorrência, que teve como base os depoimentos dos policiais envolvidos na ocorrência, Miguel e outros três jovens teriam roubado o carro por volta das 18h. Localizado o veículo, os policiais iniciaram uma perseguição que terminou quando eles entraram com o carro num descampado. Lá, havia um parque de diversões. O condutor perdeu o controle da direção e bateu na grade de um carrossel.
Os garotos saíram com as mãos para cima e atenderam a ordem para se deitarem no chão, segundo os policiais. No entanto, ainda segundo a versão policial, Miguel teria saído com uma arma em punho e foi atingido por dois disparos. Outros três menores, um jovem de 17 anos e dois adolescentes de 13 e 14 anos, foram detidos e encaminhados para a Fundação Casa.
O comando da PM de São José dos Campos informou que o garoto morto estava com um revólver calibre 32 nas mãos e escondia um simulacro de pistola sob o tapete do veículo. A dona do automóvel não reconheceu nenhum dos garotos como autores do roubo do veículo. A investigação teria apontado que os menores seriam receptadores do carro roubado.
Os oito mortos antes de Miguel
Dois suspeitos em janeiro de 2011
Na noite de 28 de janeiro de 2011, dois homens, não identificados, foram mortos a tiros pelo policial. Os suspeitos teriam roubado uma casa na rua Lorenzo Lotto, no Parque Maria Helena, zona sul da capital paulista. Segundo o que afirmou o PM no 92º DP (Distrito Policial), no Parque Santo Antônio, os suspeitos tentaram fugir em um Volkswagen Golf e, durante troca de tiros, foram mortos.
Um em março de 2014
Em 17 de março de 2014, o policial Sudré teria atirado e matado um motorista que teve apenas a idade revelada (33 anos) em Poço das Antas, Caraguatatuba, litoral de São Paulo. Após a participação no caso, ele foi transferido para o Vale do Paraíba.
Dois em maio de 2015
Em 29 de maio de 2015, o policial participou de uma intervenção que resultou na morte de mais dois suspeitos. Foram mortos Uanderson de Oliveira Gonçalves Martins, 18, e Lucas Aguiar, 17. Naquela ocorrência, segundo a investigação policial apurou, ele não atirou.
Durante a ocorrência, os dois jovens estariam conduzindo um carro roubado na estrada Natan Sampaio, no Jardim Capetingal, em São José dos Campos, por volta das 4h. A equipe policial teria dado ordem para que os suspeitos parassem o carro, o que não aconteceu. Nenhum policial se feriu durante a ação.
Um em fevereiro de 2016
Na noite de 8 de fevereiro de 2016, o cabo atirou contra Matheus Pietro Santos Queres, 21, na rua Antônio José Matos Lima, no Parque Residencial União, também em São José dos Campos.
Desta vez, o policial informou na delegacia que o suspeito estava com uma motocicleta Honda CB 300R roubada e tinha sob posse uma arma de fogo de uso restrito. Os policiais só apresentaram o caso no 3º DP da cidade dois dias depois.
Um em abril de 2018
Na madrugada de 25 de abril de 2018, o policial estava na equipe que matou Bruno do Nascimento Barbosa, 28, no Parque Novo Horizonte, em São José dos Campos. Segundo a investigação policial, o cabo Sudré não atirou, mas participou da intervenção.
Os policiais disseram na delegacia que Barbosa estava com uma arma e atirou contra eles, que "revidaram à injusta agressão". Nenhum policial ficou ferido na ocorrência.
Um em janeiro de 2019
No noite de 5 de janeiro de 2019, o policial Sudré atirou contra um homem, identificado apenas pela idade (46), na rua Caravelas, no Parque Independência, também em São José dos Campos. Ele teria roubado um estabelecimento e, na tentativa de fuga, teria trocado tiros com o policial.
Outro lado
A reportagem ligou na 2ª Companhia do 46º BPM/I (Batalhão da Polícia Militar no Interior), onde o cabo Thiago Santos Sudré está lotado, mas foi informada de que ele não estava lá no momento da ligação. Um colega de farda do cabo anotou o telefone da reportagem e disse que encaminharia a ele. Até a última atualização deste texto, o policial não entrou em contato.
A reportagem questionou à Corregedoria da corporação se o policial tinha um advogado constituído e foi informada que ele foi ao órgão prestar depoimento sozinho. A reportagem também pediu entrevista a ele via SSP (Secretaria da Segurança Pública), mas não teve retorno sobre o pedido. Procurada, a pasta não se manifestou sobre o assunto até esta publicação.
Com relação ao caso do adolescente Miguel, a pasta havia divulgado nota, anteriormente, informando que todas as circunstâncias relativas aos fatos são apuradas pelo 3º DP de São José dos Campos e pela Polícia Militar por meio de um IPM (Inquérito Policial Militar), que é acompanhado pela Corregedoria da corporação.
"As armas dos policiais foram encaminhadas para perícia, assim como o revólver calibre 32 e um simulacro utilizado pelos suspeitos. Os envolvidos seguem afastados da atividade operacional, cumprindo expediente administrativo, enquanto durarem as investigações", disse a pasta por meio de nota oficial.
As mortes da polícia e a política de João Doria
Estudo do Instituto Sou da Paz, publicado em primeira mão pelo UOL, aponta que, nos primeiros seis meses deste ano, a cada três mortes violentas registradas na capital paulista, pelo menos uma tinha como autor um policial, militar ou civil. Questionado sobre os números, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afirmou que a redução da letalidade policial no estado "pode acontecer, mas não é uma obrigatoriedade". O discurso foi criticado pelos principais especialistas de segurança pública do país, ligados ao FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
Oficialmente, a Polícia Militar considera como negativas ocorrências que terminam em morte, sejam de suspeitos ou de policiais. Doria já havia sido criticado por oposicionistas durante a campanha eleitoral do ano passado, depois de afirmar que o policial deve "atirar para matar" e de dizer, ao lado do deputado Coronel Paulo Telhada (PP), que os policiais que matarem devem ter, pagos pelo estado, "os melhores advogados" disponíveis. À época, o comandante-geral da PM disse que a orientação é de proteger vidas.
Em uma ação de abril deste ano, em que policiais militares mataram 11 suspeitos de participarem de uma tentativa de assalto a banco na cidade de Guararema, o governador homenageou os PMs envolvidos na ocorrência em um evento no Palácio dos Bandeirantes. Relatório da ouvidoria das polícias apontou que, em ao menos quatro mortes daquela ocorrência, os suspeitos já estariam rendidos. Em coletiva de imprensa, Doria desacreditou o relatório da ouvidoria e afirmou que não houve excesso na ocorrência.
Para o professor de gestão pública da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Rafael Alcadipani, "qualquer ação policial que resulta em morte jamais deve ser celebrada. Porque toda vez que há confronto o policial também está em risco". Ainda de acordo com o especialista, "a ação policial perfeita, e que deve ser comemorada, é aquela em que não há confronto e o suspeito é preso".
Em 2018, durante a gestão do governador Márcio França (PSB), a PM de São Paulo reduziu em 9,5% o número de pessoas mortas por policiais. No ano anterior, na gestão Geraldo Alckmin (PSDB), as polícias de São Paulo bateram recorde de letalidade. Em contraponto, 60 policiais foram mortos em serviço e durante a folga tanto em 2017 quanto em 2018.
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