'Não é só prender': 'cracolândia' expõe ineficiência, dizem especialistas
Dez dias após a desocupação da chamada "cracolândia" da praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo, especialistas ouvidos pelo UOL avaliam que a ação expõe a ineficiência do Estado no combate ao tráfico de drogas e das políticas públicas voltadas a pessoas em situação de rua na região.
A medida fez com que os ocupantes da praça, predominantemente dependentes químicos, passassem a perambular sem destino certo, espalhando o fluxo pela região central da cidade e causando sensação de insegurança em moradores e comerciantes da área.
"Não se pode iniciar uma intervenção que envolve remoção de pessoas sem antes ter uma preparação das políticas de atendimento a essa população. É como se a história dessas pessoas fosse apagada", afirma o advogado Gabriel Sampaio, que coordena o programa de enfrentamento à violência institucional da ONG Conectas Direitos Humanos.
Na quinta-feira (19), oito pessoas foram presas em uma operação policial para o cumprimento de 32 mandados de prisão. Na ocasião, houve nova dispersão do fluxo da "cracolândia", que então se concentrava na rua Frederico Steidel, no bairro Campos Elíseos.
Não é só prender. O Estado precisa atuar na origem do problema, com uma política de assistência social e de redução de danos quando o usuário ainda não está na 'cracolândia'. Para onde vão essas pessoas? A dimensão central é o tratamento do vício, mas a sociedade não se importa"
Rafael Alcadipani, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas)
A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social não responderam aos questionamentos feitos pela reportagem referentes ao acolhimento de pessoas em situação de rua após a desocupação da praça Princesa Isabel.
Morte em ação policial
O assassinato de uma pessoa em situação de rua em meio a uma ação policial levou a Defensoria Pública a encaminhar um documento à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pedindo proteção a quem vive em situação de rua na "cracolândia".
No texto, assinado em conjunto com a ONG Conectas Direitos Humanos, o órgão cita ações violentas da GCM (Guarda Civil Metropolitana) na retirada dos moradores, incluindo chutes, agressões com cassetetes, tiros de bala de borracha e até mordida de cães conduzidos pelos agentes. O padre Julio Lancelotti acusou os agentes de quebrar barracas e tomar cobertores de pessoas em situação de rua.
O UOL flagrou uma dessas agressões, quando um agente atingiu a cabeça de uma pessoa em situação de rua na avenida Rio Branco com um golpe de cassetete. Com sangramento, o homem foi socorrido e levado ao hospital em seguida. As fotos feitas pela reportagem após a agressão foram encaminhadas à Conectas Direitos Humanos e à GCM, que diz investigar o caso.
"O fato de ele estar próximo da 'cracolândia' não autoriza o tratamento truculento. O nome disso é violência institucional, que está sendo naturalizada e contaminando a sociedade nessa fobia contra pessoas mais pobres. O Estado deve garantir os direitos do cidadão", critica Gabriel Sampaio.
A GCM informou que apura todas as denúncias de eventuais irregularidades cometidas por agentes da instituição, incluindo o caso de agressão a um morador de rua presenciado pelo UOL. "Os agentes [da GCM] recebem treinamento para uma atuação humanizada e com respeito aos direitos humanos", informou um dos trechos do texto.
Para Sampaio, as ações tomadas após a desocupação da praça Princesa Isabel são "insuficientes" para resolver uma situação de saúde pública. Ele questiona a criminalização de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social em meio à ação de combate ao tráfico de drogas na "cracolândia".
"O usuário de drogas não pode ser tratado como um criminoso ou um problema de Segurança Pública. E o resultado dessas intervenções não aparece, porque o fenômeno do tráfico de drogas migra para outro local. A ação que viola direitos sob o pretexto de alcançar traficantes não é eficiente", afirma.
Flagrados em vídeos feitos por moradores na noite de 12 de maio durante a dispersão de pessoas em situação de rua na avenida Rio Branco, próximo à praça Princesa Isabel, três policiais civis admitiram que fizeram disparos quando o dependente químico em situação de rua Raimundo Rodrigues Fonseca Júnior, 32, morreu baleado. O caso está sendo investigado pelo DHPP (Departamento estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa).
Cracolândia como "símbolo político"'
Professor da FGV e especialista em Segurança Pública, Rafael Alcadipani, contesta a ideia de que as ações policiais são eficazes para resolver o problema da "cracolândia". "A estratégia de prender traficante e desestruturar o tráfico está correta. Mas é preciso desestabilizar a hierarquia. E os chefes não estão na 'cracolândia'", complementa.
Alcadipani também crítica a desocupação da praça Princesa Isabel. No entendimento dele, a ação deveria ocorrer de maneira integrada entre órgãos de Segurança Pública, o poder público e até o Judiciário.
"Só uma força-tarefa poderia resolver o problema da 'cracolândia'. Os órgãos precisam atuar em conjunto até para promover uma troca de informações, mas não é o que acontece. Com os seus erros e acertos, é só a polícia que atua ali", avalia.
O especialista cita interesses políticos envolvidos na ação. Nesta semana, Rodrigo Garcia (PSDB), governador de São Paulo que busca a reeleição, disse que a adesão a tratamentos é mais fácil com a dispersão de usuários.
"O pior momento para agir na 'cracolândia' é em ano eleitoral. O Rodrigo Garcia precisa subir nas pesquisas. Ele não vai resolver o problema, mas parece estar criando fatos em cima da 'cracolândia' como símbolo político", diz.
Em entrevista ao UOL News, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) disse que a operação na região está sendo bem-sucedida por levar "serviços de assistência e saúde" aos dependentes químicos.
Questionada, a SSP (Secretaria de Segurança Pública) limitou-se a dizer que a Policia Civil participa de operações de combate ao tráfico de drogas nas ruas de São Paulo.
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