Novo coordenador de povos isolados da Funai boicotou terra indígena no Pará
Resumo da notícia
- Geovanio Katukina assumiu no último dia 15 cargo que foi do indigenista Bruno Pereira, assassinado em junho
- Katukina emitiu parecer controverso que coloca em risco a terra Ituna Itatá
- Proteção da área indígena depende de evidências de que é habitada
O novo coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai (Fundação Nacional do Índio), Geovanio Oitaiã Pantoja, ignorou evidências coletadas em campo sobre a possível existência de um povo sem contato na terra indígena Ituna Itatá, no sul do Pará, colocando em risco a proteção do território.
Pantoja — mais conhecido como Geovanio Katukina, em referência ao povo ao qual pertence — ocupava a coordenação de isolados da Funai interinamente desde janeiro e foi efetivado no cargo no último dia 15. Esse foi o último posto no órgão do indigenista Bruno Pereira, assassinado no Vale do Javari no início de junho.
Documentos obtidos com exclusividade pela Repórter Brasil demonstram que Katukina emitiu um parecer contestando indícios coletados por servidores do órgão da existência do "povo nº 110 - Igarapé Ipiaçava" na terra indígena Ituna Itatá, cuja portaria de interdição temporária venceria em janeiro deste ano.
O parecer subsidiou um despacho da Direção de Proteção Territorial que concluiu, em 23 de novembro, que não foi possível confirmar a presença de indígenas isolados na área. A Funai chegou a divulgar, em janeiro, que não iria renovar a portaria, mas a Justiça interferiu e garantiu a proteção do território.
Localizada nas margens do rio Xingu, a Ituna Itatá vem sendo ocupada por grileiros e está entre as terras indígenas mais desmatadas nos últimos anos. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Bruno Pereira alertou que esse é um dos territórios de isolados que são alvo "de interesses fundiários e minerários monstruosos. São terras relativamente grandes e que valem milhões e milhões de reais". A entrevista foi publicada, em 18 de junho, após sua morte.
Melhores achados da década
As evidências contestadas foram obtidas por indigenistas experientes e consideradas as mais consistentes em dez anos de pesquisas na região. A expedição foi realizada em setembro de 2021, quando Katukina ocupava o cargo de coordenador da Política de Proteção e Localização de Indígenas Isolados.
Entre os achados estão um utensílio de cerâmica utilizado para beber água, reconhecido por indígenas Asurini como possível obra de grupos isolados, e um casco de jabuti, alimento comum dos indígenas. Em ambos os casos, os expedicionários estimaram que os objetos encontrados tiveram uso recente.
Também foi localizada uma roça antiga aberta na mata e cacos de cerâmica. "Articulando todos esses vestígios a indicação é que pode ser um povo isolado", afirma Camila Jácome, arqueóloga da Universidade Federal do Oeste do Pará.
As evidências foram publicadas em um relatório interno da Funai. Após a publicação, um dos servidores que assina o documento, Guilherme Martins, foi transferido para o setor de recursos humanos. Segundo entrevista que deu à Agência Pública, foi uma retaliação ao trabalho feito em Ituna Itatá.
Resposta sem embasamento
Ainda em campo, a equipe de indigenistas que participou da expedição ligou para informar Katukina sobre os achados. A Repórter Brasil apurou, porém, que a primeira reação do atual coordenador de isolados foi tentar desmentir os vestígios.
A postura de negar as evidências tornou-se oficial na redação do parecer publicado em 11 de novembro, que é assinado também por Katukina. O documento menciona supostas imagens de satélite para cravar que "não foram detectadas aberturas de 'capoeira' que caracterizassem ocupação de índios isolados na região analisada". A afirmação ignorava, assim, os vestígios de uma roça apontados pelos indigenistas que visitaram o local.
Para o especialista em sensoriamento remoto Juan Doblas, que trabalha no Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e é doutorando do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), a conclusão do parecer é equivocada, porque o satélite utilizado na suposta análise não tem resolução suficiente para ver esse tipo de detalhe, já que roças indígenas de grupos isolados geralmente são aberturas pequenas na mata e podem ser feitas até sob a copa das árvores.
Não há evidência técnica para refutar a presença de isolados nesse território. As imagens são insuficientes para registrar as alterações que esse grupo pode ter produzido na floresta"
Juan Doblas, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia
Um relatório do Observatório dos Povos Isolados (OPI) também obtido com exclusividade pela Repórter Brasil, afirma que "a tentativa de deslegitimar o trabalho através de análise geoespacial inconsistente configura imprudência e imperícia, senão má-fé."
Organização independente de indigenistas, o OPI também questiona a própria origem das imagens citadas no parecer da Funai, que teriam sido disponibilizadas pelo Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), vinculado ao Ministério da Defesa.
Em resposta obtida por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação) pelo OPI, o Censipam afirma que o projeto de monitoramento de indígenas isolados em colaboração com a Funai "não foi testado oficialmente em nenhuma terra indígena e ainda está em desenvolvimento".
Outro pedido de LAI, dirigido pela organização à própria Funai em maio de 2022, recebeu como resposta que o órgão indigenista "desconhece formalização de projeto" de uso dos satélites do Ministério da Defesa. "Se havia dúvidas entre as duas instituições sobre o desenvolvimento do projeto, é descabido que seus resultados incipientes sejam utilizados para refutar a presença de indígenas isolados atestada pela equipe de campo", afirma o relatório do OPI.
A quem interessa confirmar ou não a presença de indígenas ali? O processo na Ituna Itatá expõe todas as vísceras da política de proteção dos isolados"
Fábio Nogueira, antropólogo e coordenador executivo do OPI
Reunião fora da agenda
O parecer de Geovanio Katukina dialoga com a agenda do senador Zequinha Marinho (PSC-PA), autor de um projeto de decreto legislativo que pretende acabar com a terra indígena Ituna Itatá.
Não há tribos isoladas na região. A bem da verdade, nem sequer há um povo indígena ali habitando"
Zequinha Marinho (PSC), senador
Na opinião do parlamentar, o que existe são "terras produtivas" e famílias assentadas.
No final do ano passado, o senador encontrou-se com o presidente da Funai, Marcelo Xavier, em uma reunião que não constou na agenda do dirigente do órgão indigenista. Segundo o repórter Rubens Valente, eles discutiram o "cunho ideológico e imprestabilidade" do relatório da expedição que encontrou vestígios de isolados em Ituna Itatá.
A conversa ocorreu no dia 9 de novembro. No dia 11 de novembro, Katukina apresentou a análise técnica na qual refutava as provas obtidas em campo.
Procurado pela reportagem, Zequinha Marinho se manifestou através de nota encaminhada por sua assessoria de imprensa (leia a íntegra), na qual diz que sua atuação "tem o único propósito de resolver o conflito agrário na região, que já se estende há mais de uma década".
Por meio de nota encaminhada à reportagem, a Funai elogiou Katukina e a expertise da equipe da coordenação-geral de isolados. "O atual coordenador atuou nas Frentes de Proteção Etnoambiental (FPEs) Madeira, Purus, Madeira-Purus, Awá e Yanomami-Yekuna, aprendendo na prática com sertanistas especializados na localização de indígenas isolados, na identificação de vestígios desses grupos e nas metodologias de proteção territorial", diz.
"A equipe técnica da CGIIRC tem suas ações embasadas em meticulosos trabalhos de campo de localização de comunidades isoladas", acrescenta. A íntegra pode ser lida aqui.
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