'Reprimir por fanatismo religioso é batalha perdida', diz David Copperfield
David Copperfield*
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Reprodução
David Copperfield brinca com as pernas separadas do tronco em apresentação
Artistas fazem algo que os fanáticos não conseguem: eles rompem as divisões entre as pessoas.
Em 2012, um homem na Arábia Saudita foi executado por praticar bruxaria; no ano passado, trabalhadores convidados foram levados a julgamento na Arábia Saudita por "feitiçaria e bruxaria"; neste ano surgiram relatos da decapitação de um mágico de rua pelo Estado islâmico na Síria; e, é claro, houve o ataque ao "Charlie Hebdo", em Paris.
Os eventos mais recentes ofuscaram a pirataria cometida contra a Sony por parte da Coreia do Norte por causa do filme "A Entrevista". Aqueles que hackearam a Sony, os homens que supostamente assassinaram o mágico e os terroristas em Paris têm em comum um ódio à liberdade de expressão e à democracia. Eles também compartilham a crença equivocada de que a brutalidade e a força podem suprimir o espírito humano e sua expressão inevitável através da arte. Eles estão travando uma batalha perdida.
Como mágico e estudante de história da magia, posso atestar que a magia muitas vezes entra em conflito com os fanáticos. Tenho inúmeras cópias do livro "The Discoverie of Witchcraft" (A descoberta da feitiçaria), que foi escrito em 1584 para mostrar que aquilo que as pessoas pensavam que era obra do Diabo era prestidigitação. O rei James 1º não se convenceu e ordenou que todos os exemplares fossem queimados. Seus esforços de supressão falharam. Em uma época em que os livros eram difíceis de imprimir, centenas de cópias foram produzidas. Um título obscuro tornou-se um item quente.
Como se diz no mundo do cinema, cortamos para: Moscou, meados dos anos 1980. Eu estou me apresentando. A Igreja Ortodoxa Russa afirma que meu show é contra a religião. Piquetes se formam na frente do teatro.
Só que meu show nunca teve um elemento político ou religioso; sua ideologia é "viva seus sonhos". É o máximo de "mensagem" que eu passo.
Boris N. Yeltsin me convida para visitar o Kremlin. Quando chego, quem está lá senão o patriarca, o chefe da Igreja Ortodoxa Russa. Por meio de intérpretes conversamos, batemos papo, e os títulos e papéis oficiais vão sumindo, enquanto a noite (e a vodca) avança. No final da noite, o patriarca sorri e me mostra os polegares para cima. Nós tínhamos começado como estranhos, suspeitando um do outro, e terminamos como amigos. Ele percebeu que eu não era um emissário de Satanás, apenas um cara trabalhador de Nova Jersey, tão polêmico (e, espero, tão divertido) quanto uma melodia de Cole Porter.
Enquanto isso, a polêmica dos piquetes fez com que os shows lotassem e os ingressos fossem disputados por preços inacreditáveis.
Os criadores do "Charlie Hebdo" e do filme "A Entrevista" eram humoristas. Mas as pessoas acusadas de feitiçaria e bruxaria, e executadas por isso, não eram. E os mágicos? Eles são artistas, a sua mensagem é simplesmente "assista e desfrute". Quem pensa em matar alguém assim teme e odeia a liberdade do espírito humano e a tendência das pessoas de se unirem em torno de experiências que trazem prazer - algo que a arte e os artistas tendem a fazer acontecer. O ramo do ódio precisa da crença em "nós" e "eles". Sem um inimigo, ele não pode funcionar.
Durante meu programa, eu falo muito com o público. Descubro de onde vêm as pessoas. Neste ano, vi israelenses e palestinos, além de irlandeses católicos e protestantes, de pé um ao lado do outro, sorrindo, aplaudindo. Às vezes, tive judeus ortodoxos e clérigos muçulmanos participando juntos no palco em uma das minhas ilusões. Por 90 minutos, as divisões se dissolvem, e a paz e a amizade reinam.
Os meus colegas artistas e eu estamos aqui para criar a concórdia entre todos os membros da audiência, mesmo que apenas por uma ou duas horas. A arte tem a capacidade de unir as pessoas em uma mente coletiva. Essa é a verdadeira mágica, aquilo que o ódio não pode tolerar.
Os repressores do mundo não aprenderam que a repressão, felizmente, é contraproducente. O "Charlie Hebdo" hoje está mais popular do que nunca. "A Entrevista" conseguiu uma exposição maior do que qualquer publicitário poderia sonhar. Sem dúvida, é uma questão de tempo para que a mágica retorne à Síria, à Arábia Saudita e a outros lugares, dez vezes mais forte.
Enquanto isso, nós do ramo do entretenimento temos o dever de fazer desaparecer a ideia de que há um "nós" e um "eles". Quando as pessoas se unem em alegria e admiração, você percebe que a chave não é a suspensão da descrença, mas a suspensão de crenças divisionistas.
Se isso pode acontecer por 90 minutos durante a minha apresentação, é sinal de que pode acontecer para sempre.
* David Copperfield é ilusionista.
Tradução: Deborah Weinberg
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