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Análise: golpe na Tailândia pode provocar ciclo de violência

Sam Zarifi*

Em Bancoc (Tailândia)

23/05/2014 06h00

Os militares tailandeses removeram todas as dúvidas sobre suas intenções ao declararem lei marcial (quando uma autoridade militar toma o controle do Estado, suspendendo total ou parcialmente os direitos civis) nesta semana, e, na quinta-feira (22), anunciaram oficialmente que estavam assumindo o controle do governo, a 12ª vez que o fazem desde 1932.

O recém-criado CMPO (Comando de Manutenção da Paz e da Ordem), composto do comandante do Estado-Maior do Exército e da Marinha Real Tailandesa, da força aérea e da polícia, anunciou que suspendeu a Constituição – exceto os artigos relacionados à monarquia, a atividade dos tribunais e alguns órgãos administrativos "independentes".

Os militares disseram estar agindo para proteger a paz e solucionar o longo impasse político que causou protestos e contraprotestos, em grande parte pacíficos, em Bancoc. Eles prenderam os líderes de diferentes facções políticas mesmo enquanto estes realizavam negociações.

Mas a menos que o CMPO possa estabelecer rapidamente um roteiro para o retorno ao governo civil, ele corre o risco de provocar um ciclo de violência e violações de direitos humanos. Quanto mais cedo os militares revogarem a lei marcial, melhor para a Tailândia. O chefe do Exército, o general Prayuth Chan-ocha, impôs a lei marcial na terça-feira e se declarou "comandante supremo", mas negou veementemente que, na prática, deu um golpe.

A autoridade do CMPO se baseia no estatuto de lei marcial da Tailândia, que foi severamente criticado pelos poderes irrestritos que concede às forças armadas. Fazendo uso dela, os militares declaram superioridade sobre toda a autoridade civil em assuntos de segurança e ordem pública, incluindo o poder de prender e deter pessoas sem acusação por até sete dias e executar buscas sem mandado.

A lei marcial concede aos militares a autoridade de governar por decreto, na prática suspendendo os direitos humanos garantidos pela Constituição e pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, do qual a Tailândia faz parte. A lei também fornece aos militares imunidade contra quaisquer pedidos de indenização por suas ações.

Os militares impuseram um toque de recolher e controles rígidos sobre a mídia. Nas primeiras horas da lei marcial, o CMPO fechou emissoras de TV e rádio e emitiu ordens proibindo a imprensa de publicar reportagens "que possam distorcer os fatos, causar confusão entre o público ou levar a violência adicional". Além disso, os sites das redes sociais e seus usuários foram proibidos de publicar conteúdo que possa "enganar o público", causar "escalada do conflito" ou promover "oposição à operação do CMPO".

Inicialmente, o CMPO foi cuidadoso em invocar apenas alguns poucos de seus poderes segundo a lei, visando reforçar sua afirmação de que suas ações não constituíam um golpe. Mas agora ele corre o risco de uma reação interna e possíveis sanções internacionais –inclusive dos Estados Unidos, os principais apoiadores dos militares tailandeses.

O primeiro-ministro em exercício, Niwatthamrong Boonsongpaisan, foi o único líder político que escapou da prisão. Niwatthamrong já estava em uma posição fraca como líder interino, que apenas recentemente substituiu Yingluck Shinawatta, retirada do cargo neste mês pelo Tribunal Constitucional com bases contestadas.

A própria Yingluck estava substituindo seu irmão, Thaksin Shinawatta, o líder do chamado movimento Camisa Vermelha. Seu período como primeiro-ministro provou ser profundamente divisor e caracterizado por sérias violações de direitos humanos. Ele foi derrubado no último golpe em 2006 e fugiu do país para evitar ser processado por corrupção.

Os camisas vermelhas, que continuaram ganhando as eleições nacionais com votos provenientes principalmente das províncias, estavam em um impasse político com seus rivais, os camisas amarelas, que representam a população mais rica de Bancoc. Os camisas amarelas conseguiram derrubar vários governos ligados a Shinawatta por meio de uma combinação de intervenção militar e manobras administrativas e jurídicas.

É esse conflito, que transcorreu em grande parte nos protestos em Bancoc, que permitiu ao CMPO justificar sua intervenção. Na capital do país, soldados e policiais parecem exercer moderação. Vamos esperar que assim continue, pois há um longo histórico de violações de direitos humanos sob lei marcial na Tailândia.

Em cerca de 30 das 76 províncias da Tailândia, a lei marcial já estava em vigor antes da terça-feira, em alguns casos por anos. Execuções extrajudiciais, mortes sob custódia, desaparecimentos e tortura foram documentados sob jurisdição militar. Praticamente ninguém respondeu por essas violações.

O general Prayuth deu pouca explicação para suas ações nesta semana, dado que o atrito político dos últimos meses se restringiu a Bancoc. Além disso, é difícil justificar o fechamento dos veículos da mídia: há um crescente risco de violência caso a mídia não possa relatar sobre a situação.

Após uma década de desgoverno, o povo tailandês merece maior respeito pelos direitos humanos, instituições mais fortes e mais prestação de contas. O governo por lei marcial é o oposto do estado de direito; isso promove um ambiente propenso a violações de direitos e deve ser revogada.

* Sam Zarifi é o diretor regional para Ásia e Pacífico, com sede regional em Bancoc, da Comissão Internacional de Juristas.)