O governo Obama: uma cartilha para estrangeiros
A grande notícia, desde a posse e de todo dia desde então, é que Barack Obama não é mais negro. Sim, é verdade. E os Estados Unidos seguem o mesmo caminho. Algumas pessoas votaram nele porque ele era negro e porque sua eleição seria um feito culminante da longa marcha que teve início com o "sonho" de Martin Luther King Jr., dois anos após o nascimento de Obama. Alguns votaram contra ele porque era negro e porque restavam, apesar da Revolução Cultural sem paralelo que o país realizou em meio século, resquícios de segregacionismo e racismo.
A batalha foi vencida. A era da segregação do Estado foi relegada ao passado. E Barack Obama é - como o slogan que ele lançou na Convenção Nacional Democrata de 2004 em Boston, na ocasião de seu primeiro "grande" discurso - o 44º presidente, não desta América, ou daquela América, mas dos Estados Unidos da América. A reestruturação do campo visível. O fim da política concebida como domínio da pigmentologia. Nem preto, nem branco, nem birracial: Obama.
A segunda coisa que nós europeus precisamos colocar rapidamente em nossas cabeças é que Barack Obama não está na "esquerda". Há de fato, ao contrário da crença popular deste lado do Atlântico, uma esquerda americana. Há uma ala à esquerda do Partido Democrata que de fato nunca apoiou Obama sem reticência ou resistência, que na época daquele discurso era apenas um jovem senador carismático de Illinois. Barack Obama não é um esquerdista. Barack Obama nomeou para postos chaves republicanos (Robert Gates, mantido em seu cargo como secretário da Defesa; o ex-deputado de Illinois, Ray LaHood, como secretário dos Transportes) e tecnocratas ultrapragmáticos (Timothy Geithner como secretário do Tesouro; Lawrence Summers como diretor do Conselho Econômico Nacional; Peter R. Orszag como diretor do Escritório de Administração e Orçamento) que, francamente, não têm muito a ver com o que nós na Europa chamamos de esquerda.
Barack Obama não é Che Guevara. Barack Obama não é um membro honorário do Partido Socialista francês. Barack Obama é o encontro no mesmo corpo, na mesa de dissecação da iconologia americana, das almas de King e John F. Kennedy.
A terceira nulidade da qual alguém gostaria de ser poupado durante esta avalanche inicial de comentários: Barack Obama não é, e nem será, o presidente do "declínio do império americano". Ele ordenou o fechamento do campo de detenção de Guantánamo, naturalmente. Ele deixará o Iraque antes do final de 2011 como prometeu. É provável que ele romperá com a ideologia "messiânica" e "inevitável" do governo Bush em relação à exportação dos ideais democráticos. E ele empregará, em suas relações com seus aliados, uma retórica impregnada do multilateralismo tão dolorosamente ausente em seu antecessor. Mas os europeus não devem contar com que ele admita a culpa dos Estados Unidos ou capitule para Chávez ou Ahmadinejad, ou mesmo busque correndo o advento do mundo multipolar com que russos e chineses sonham.
Os Estados Unidos permanecerão os Estados Unidos. Os Estados Unidos não fornecerão ao antiamericanismo planetário novas varas para que apanhem. Quer gostemos ou não, a América liderada por Obama fará o que puder para permanecer a principal potência econômica, política e militar no mundo.
E qual a mudança, então? Na política doméstica, ele ocorrerá em três áreas principais. A reforma do sistema de saúde que exclui 46 milhões de americanos e com o qual todos os presidentes dos Estados Unidos até Obama (inclusive Bill Clinton) lidaram e então desistiram. Um New Deal neo-keynesiano visando a reconstrução da infraestrutura da nação (estradas, pontes, diques em Nova Orleans, bairros abandonados em Detroit, Cleveland, Los Angeles e Buffalo, Nova York) que, em algumas áreas, se compara a dos países mais abandonados do Terceiro Mundo. E então a reforma do sistema financeiro: antes desta crise, seus observadores mais atentos - Nouriel Roubini, professor de economia da Universidade de Nova York, Harry Markopolos, uma ex-autoridade de investimento que tentou alertar a Comissão de Valores Mobiliários de que Bernard Madoff era uma fraude; Nassim Nicholas Taleb, um autor premonitório de "A Lógica do Cisne Negro: O Impacto do Altamente Improvável" - gritavam que o mundo estava sendo conduzido para a catástrofe, mas a ideologia de desregulamentação predominante os abafava. Que Obama se limite a estas três tarefas, que abra esta frente tripla de trabalho sem demora; isto representa, na América atual, mais do que uma mudança de curso. É uma revolução.
E quanto à política externa: finalmente, o que se sabe sobre as convicções, declarações ou mesmo objetivos ocultos do novo presidente me levam a crer que a política externa de seu governo inclui, além do Iraque, dois pontos principais de reorientação. Já no caso do Oriente Médio, ele não aguardará até o final do seu segundo mandato, como Clinton e Bush, para se informar da urgência do conflito entre israelenses e palestinos e então se lançar em uma corrida final e patética para obter um acordo impossível entre as duas partes.
A questão das relações com o Paquistão: ele manterá a aliança, talvez até mesmo a fortalecerá, mas romperá com a incondicionalidade que foi habitual sob os últimos três governos, e que tornou a "terra dos puros" o país mais perigoso do planeta. Em outras palavras, ele apresentará condições associadas à sinceridade da luta do governo paquistanês contra os agentes da Al Qaeda que se infiltraram nos serviços secretos do país, condições baseadas no controle do governo de seu arsenal nuclear, que ninguém pode garantir que será mantido longe das mãos dos jihadistas. E por esses dois motivos, também, a presidência de Obama representa uma chance para o mundo.
(O novo livro de Bernard-Henry Lévy, "Left in Dark Times: A Stand Against The New Barbarism" -Ce grand cadavre à la renverse- foi publicado em setembro nos Estados Unidos pela Random House.)
Tradução: George El Khouri Andolfato
A batalha foi vencida. A era da segregação do Estado foi relegada ao passado. E Barack Obama é - como o slogan que ele lançou na Convenção Nacional Democrata de 2004 em Boston, na ocasião de seu primeiro "grande" discurso - o 44º presidente, não desta América, ou daquela América, mas dos Estados Unidos da América. A reestruturação do campo visível. O fim da política concebida como domínio da pigmentologia. Nem preto, nem branco, nem birracial: Obama.
A segunda coisa que nós europeus precisamos colocar rapidamente em nossas cabeças é que Barack Obama não está na "esquerda". Há de fato, ao contrário da crença popular deste lado do Atlântico, uma esquerda americana. Há uma ala à esquerda do Partido Democrata que de fato nunca apoiou Obama sem reticência ou resistência, que na época daquele discurso era apenas um jovem senador carismático de Illinois. Barack Obama não é um esquerdista. Barack Obama nomeou para postos chaves republicanos (Robert Gates, mantido em seu cargo como secretário da Defesa; o ex-deputado de Illinois, Ray LaHood, como secretário dos Transportes) e tecnocratas ultrapragmáticos (Timothy Geithner como secretário do Tesouro; Lawrence Summers como diretor do Conselho Econômico Nacional; Peter R. Orszag como diretor do Escritório de Administração e Orçamento) que, francamente, não têm muito a ver com o que nós na Europa chamamos de esquerda.
Barack Obama não é Che Guevara. Barack Obama não é um membro honorário do Partido Socialista francês. Barack Obama é o encontro no mesmo corpo, na mesa de dissecação da iconologia americana, das almas de King e John F. Kennedy.
A terceira nulidade da qual alguém gostaria de ser poupado durante esta avalanche inicial de comentários: Barack Obama não é, e nem será, o presidente do "declínio do império americano". Ele ordenou o fechamento do campo de detenção de Guantánamo, naturalmente. Ele deixará o Iraque antes do final de 2011 como prometeu. É provável que ele romperá com a ideologia "messiânica" e "inevitável" do governo Bush em relação à exportação dos ideais democráticos. E ele empregará, em suas relações com seus aliados, uma retórica impregnada do multilateralismo tão dolorosamente ausente em seu antecessor. Mas os europeus não devem contar com que ele admita a culpa dos Estados Unidos ou capitule para Chávez ou Ahmadinejad, ou mesmo busque correndo o advento do mundo multipolar com que russos e chineses sonham.
Os Estados Unidos permanecerão os Estados Unidos. Os Estados Unidos não fornecerão ao antiamericanismo planetário novas varas para que apanhem. Quer gostemos ou não, a América liderada por Obama fará o que puder para permanecer a principal potência econômica, política e militar no mundo.
E qual a mudança, então? Na política doméstica, ele ocorrerá em três áreas principais. A reforma do sistema de saúde que exclui 46 milhões de americanos e com o qual todos os presidentes dos Estados Unidos até Obama (inclusive Bill Clinton) lidaram e então desistiram. Um New Deal neo-keynesiano visando a reconstrução da infraestrutura da nação (estradas, pontes, diques em Nova Orleans, bairros abandonados em Detroit, Cleveland, Los Angeles e Buffalo, Nova York) que, em algumas áreas, se compara a dos países mais abandonados do Terceiro Mundo. E então a reforma do sistema financeiro: antes desta crise, seus observadores mais atentos - Nouriel Roubini, professor de economia da Universidade de Nova York, Harry Markopolos, uma ex-autoridade de investimento que tentou alertar a Comissão de Valores Mobiliários de que Bernard Madoff era uma fraude; Nassim Nicholas Taleb, um autor premonitório de "A Lógica do Cisne Negro: O Impacto do Altamente Improvável" - gritavam que o mundo estava sendo conduzido para a catástrofe, mas a ideologia de desregulamentação predominante os abafava. Que Obama se limite a estas três tarefas, que abra esta frente tripla de trabalho sem demora; isto representa, na América atual, mais do que uma mudança de curso. É uma revolução.
E quanto à política externa: finalmente, o que se sabe sobre as convicções, declarações ou mesmo objetivos ocultos do novo presidente me levam a crer que a política externa de seu governo inclui, além do Iraque, dois pontos principais de reorientação. Já no caso do Oriente Médio, ele não aguardará até o final do seu segundo mandato, como Clinton e Bush, para se informar da urgência do conflito entre israelenses e palestinos e então se lançar em uma corrida final e patética para obter um acordo impossível entre as duas partes.
A questão das relações com o Paquistão: ele manterá a aliança, talvez até mesmo a fortalecerá, mas romperá com a incondicionalidade que foi habitual sob os últimos três governos, e que tornou a "terra dos puros" o país mais perigoso do planeta. Em outras palavras, ele apresentará condições associadas à sinceridade da luta do governo paquistanês contra os agentes da Al Qaeda que se infiltraram nos serviços secretos do país, condições baseadas no controle do governo de seu arsenal nuclear, que ninguém pode garantir que será mantido longe das mãos dos jihadistas. E por esses dois motivos, também, a presidência de Obama representa uma chance para o mundo.
(O novo livro de Bernard-Henry Lévy, "Left in Dark Times: A Stand Against The New Barbarism" -Ce grand cadavre à la renverse- foi publicado em setembro nos Estados Unidos pela Random House.)
Tradução: George El Khouri Andolfato
Bernard-Henri Lévy
Considerado um dos principais escritores franceses da atualidade, é autor de obras como "Quem Matou Daniel Pearl?".