O governo Obama: uma introdução para estrangeiros
A principal notícia diária desde a posse é que Barack Obama não é mais negro. Isso mesmo. E assim é a vida nos Estados Unidos. Alguns votaram nele porque ele era negro e porque sua eleição seria a maior conquista de uma longa marcha que começou com o "sonho" de Martin Luther King Jr. dois anos depois do nascimento de Obama. Alguns votaram contra porque ele era negro e porque, apesar de o país ter passado por uma Revolução Cultural sem precedentes em meio século, continuam existindo reservas de segregação e racismo.
A batalha foi ganha. A era do Estado de segregação foi relegada ao passado. E Barack Obama é - assim como diz o slogan que ele lançou na Convenção Nacional do Partido Democrata em Boston, na ocasião de seu primeiro "grande" discurso - o 44º presidente, não dessa América, ou daquela América, mas dos Estados Unidos da América. A reestruturação do campo do visível. O fim das políticas concebidas nos domínios da pigmentação. Nem negro, nem branco, nem birracial: Obama.
A segunda coisa que nós, europeus, precisamos colocar dentro de nossas cabeças rapidamente é que Barack Obama não é de "esquerda". Existe de fato, ao contrário do que comumente se acredita deste lado do Atlântico, uma esquerda americana. Existe a esquerda periférica do Partido Democrata, que de fato nunca defendeu sem resistência ou reticência Obama, que na época daquele discurso era apenas o jovem e carismático senador de Illinois.
Barack Obama não é um militante de esquerda. Barack Obama nomeou para cargos-chave republicanos (Robert Gates, mantido no posto de secretário de defesa; o ex-deputado de Illinois Ray LaHood como secretário de transportes) e tecnocratas ultra-pragmáticos (Timothy Geithner como secretário do tesouro; Lawrence Summers como diretor do Conselho Econômico Nacional; Peter R. Orszag como diretor do Departamento de Administração e Orçamento) que, sinceramente, não têm muito a ver com o que chamamos de esquerda aqui na Europa.
Barack Obama não é Che Guevara. Barack Obama não é um membro honorário do Partido Socialista Francês. Na mesa de dissecação da iconologia americana, Barack Obama é o encontro, no mesmo corpo, das almas de King e John F. Kennedy.
A terceira negativa da qual o leitor gostaria de ser poupado durante essa avalanche inicial de comentários: Barack Obama não é, e não será, o presidente do "declínio do império americano".
Ele ordenou o fechamento da prisão da Baía de Guantánamo, naturalmente. Deixará o Iraque antes do fim de 2011, como prometeu. Colocará fim à ideologia "messiânica" e "inevitável" do governo Bush em relação à exportação de ideais democráticos, provavelmente. E usará, em suas relações com aliados, uma retórica cheia de multilateralismo, que tanto faltava a seu predecessor. Mas os europeus não devem contar com ele para admitir a culpa dos EUA ou capitular em relação a Chavez ou Ahmadinejad, ou mesmo para apressar o nascimento do mundo multipolar com que sonham os russos e chineses.
Os Estados Unidos continuarão sendo os Estados Unidos. Os Estados Unidos não darão novos chicotes para o anti-americanismo planetário administrar as chibatadas. Quer gostemos ou não, os Estados Unidos liderados por Obama farão o que podem para continuar sendo a primeira potência econômica, política e militar do mundo.
Onde está a mudança, então? Na política interna, ela acontecerá em três principais campos. A reforma de um sistema de saúde que exclui 46 milhões de americanos e com o qual todos os presidentes dos Estados Unidos antes de Obama (incluindo, aliás, Bill Clinton) lutaram e do qual depois desistiram.
Um New Deal neo-keynesiano com o objetivo de reconstruir a infraestrutura do país (estradas, pontes, diques em Nova Orleans, bairros negligenciados de Detroit, Cleveland, Los Angeles e Buffalo, N.Y.), que em algumas áreas é comparável à dos países mais pobres do Terceiro Mundo. E a reforma do setor financeiro: antes da crise, os observadores mais sagazes - Nouriel Roubini, professor de economia na Universidade de Nova York; Harry Markopolos, ex-gestor de investimentos que tentou alertar a Comissão de Valores Mobiliários e Câmbio de que Bernard Madoff era uma fraude; Nassim Nicholas Taleb, autor premonitório de "The Black Swan: The Impacto of the Highly Improbable" ["O Cisne Negro: O Impacto do Altamente Improvável"] - alertaram que o mundo estava sendo levado a uma catástrofe, mas a ideologia da desregulação que prevalecia os afogou.
Que Obama cumpra essas três tarefas, que ele inaugure sua tripla frente de trabalho sem demora; tudo isso é, nos Estados Unidos de hoje, mais do que uma mudança de curso. É uma revolução.
E em relação à política internacional: por fim, o que se sabe sobre as convicções, declarações e até mesmo os motivações ocultas do novo presidente faz com que eu acredite que a política estrangeira de seu governo inclui, além do Iraque, dois pontos principais de reorientação. Já no caso do Oriente Médio, ele não está esperando até o fim do segundo mandato, como fizeram Clinton e Bush, para se informar sobre a urgência do conflito israelita-palestino e só então entrar numa corrida final e patética para obter um acordo impossível entre os dois lados.
Quanto às relações com o Paquistão: ele manterá a aliança, talvez até mesmo a fortaleça, mas porá fim à incondicionalidade costumeira dos três governos anteriores, que tornou a "terra dos puros" o país mais perigoso do planeta.
Em outras palavras, irá impor condições que exigirão sinceridade do governo do Paquistão na luta contra os agentes da al-Qaida que se infiltraram nos serviços secretos do país, condições baseadas no controle do governo sobre seu arsenal nuclear, que ninguém pode garantir que será mantido longe do alcance dos jihadistas. E por essas duas razões, também, a presidência de Obama é uma chance para o mundo.
(O novo livro de Bernard-Henri Levy, "Left in Dark Times: A Stand Against The New Barbarism", foi publicado em setembro pela Random House. Este artigo foi traduzido do francês por Sara Phenix)
Tradução: Eloise De Vylder
A batalha foi ganha. A era do Estado de segregação foi relegada ao passado. E Barack Obama é - assim como diz o slogan que ele lançou na Convenção Nacional do Partido Democrata em Boston, na ocasião de seu primeiro "grande" discurso - o 44º presidente, não dessa América, ou daquela América, mas dos Estados Unidos da América. A reestruturação do campo do visível. O fim das políticas concebidas nos domínios da pigmentação. Nem negro, nem branco, nem birracial: Obama.
A segunda coisa que nós, europeus, precisamos colocar dentro de nossas cabeças rapidamente é que Barack Obama não é de "esquerda". Existe de fato, ao contrário do que comumente se acredita deste lado do Atlântico, uma esquerda americana. Existe a esquerda periférica do Partido Democrata, que de fato nunca defendeu sem resistência ou reticência Obama, que na época daquele discurso era apenas o jovem e carismático senador de Illinois.
Barack Obama não é um militante de esquerda. Barack Obama nomeou para cargos-chave republicanos (Robert Gates, mantido no posto de secretário de defesa; o ex-deputado de Illinois Ray LaHood como secretário de transportes) e tecnocratas ultra-pragmáticos (Timothy Geithner como secretário do tesouro; Lawrence Summers como diretor do Conselho Econômico Nacional; Peter R. Orszag como diretor do Departamento de Administração e Orçamento) que, sinceramente, não têm muito a ver com o que chamamos de esquerda aqui na Europa.
Barack Obama não é Che Guevara. Barack Obama não é um membro honorário do Partido Socialista Francês. Na mesa de dissecação da iconologia americana, Barack Obama é o encontro, no mesmo corpo, das almas de King e John F. Kennedy.
A terceira negativa da qual o leitor gostaria de ser poupado durante essa avalanche inicial de comentários: Barack Obama não é, e não será, o presidente do "declínio do império americano".
Ele ordenou o fechamento da prisão da Baía de Guantánamo, naturalmente. Deixará o Iraque antes do fim de 2011, como prometeu. Colocará fim à ideologia "messiânica" e "inevitável" do governo Bush em relação à exportação de ideais democráticos, provavelmente. E usará, em suas relações com aliados, uma retórica cheia de multilateralismo, que tanto faltava a seu predecessor. Mas os europeus não devem contar com ele para admitir a culpa dos EUA ou capitular em relação a Chavez ou Ahmadinejad, ou mesmo para apressar o nascimento do mundo multipolar com que sonham os russos e chineses.
Os Estados Unidos continuarão sendo os Estados Unidos. Os Estados Unidos não darão novos chicotes para o anti-americanismo planetário administrar as chibatadas. Quer gostemos ou não, os Estados Unidos liderados por Obama farão o que podem para continuar sendo a primeira potência econômica, política e militar do mundo.
Onde está a mudança, então? Na política interna, ela acontecerá em três principais campos. A reforma de um sistema de saúde que exclui 46 milhões de americanos e com o qual todos os presidentes dos Estados Unidos antes de Obama (incluindo, aliás, Bill Clinton) lutaram e do qual depois desistiram.
Um New Deal neo-keynesiano com o objetivo de reconstruir a infraestrutura do país (estradas, pontes, diques em Nova Orleans, bairros negligenciados de Detroit, Cleveland, Los Angeles e Buffalo, N.Y.), que em algumas áreas é comparável à dos países mais pobres do Terceiro Mundo. E a reforma do setor financeiro: antes da crise, os observadores mais sagazes - Nouriel Roubini, professor de economia na Universidade de Nova York; Harry Markopolos, ex-gestor de investimentos que tentou alertar a Comissão de Valores Mobiliários e Câmbio de que Bernard Madoff era uma fraude; Nassim Nicholas Taleb, autor premonitório de "The Black Swan: The Impacto of the Highly Improbable" ["O Cisne Negro: O Impacto do Altamente Improvável"] - alertaram que o mundo estava sendo levado a uma catástrofe, mas a ideologia da desregulação que prevalecia os afogou.
Que Obama cumpra essas três tarefas, que ele inaugure sua tripla frente de trabalho sem demora; tudo isso é, nos Estados Unidos de hoje, mais do que uma mudança de curso. É uma revolução.
E em relação à política internacional: por fim, o que se sabe sobre as convicções, declarações e até mesmo os motivações ocultas do novo presidente faz com que eu acredite que a política estrangeira de seu governo inclui, além do Iraque, dois pontos principais de reorientação. Já no caso do Oriente Médio, ele não está esperando até o fim do segundo mandato, como fizeram Clinton e Bush, para se informar sobre a urgência do conflito israelita-palestino e só então entrar numa corrida final e patética para obter um acordo impossível entre os dois lados.
Quanto às relações com o Paquistão: ele manterá a aliança, talvez até mesmo a fortaleça, mas porá fim à incondicionalidade costumeira dos três governos anteriores, que tornou a "terra dos puros" o país mais perigoso do planeta.
Em outras palavras, irá impor condições que exigirão sinceridade do governo do Paquistão na luta contra os agentes da al-Qaida que se infiltraram nos serviços secretos do país, condições baseadas no controle do governo sobre seu arsenal nuclear, que ninguém pode garantir que será mantido longe do alcance dos jihadistas. E por essas duas razões, também, a presidência de Obama é uma chance para o mundo.
(O novo livro de Bernard-Henri Levy, "Left in Dark Times: A Stand Against The New Barbarism", foi publicado em setembro pela Random House. Este artigo foi traduzido do francês por Sara Phenix)
Tradução: Eloise De Vylder
Bernard-Henri Lévy
Considerado um dos principais escritores franceses da atualidade, é autor de obras como "Quem Matou Daniel Pearl?".