André Santana

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Opinião

Votos de Zanin revelam o ministro 'terrivelmente' conservador de Lula

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) prometeu e cumpriu a promessa de levar para o STF (Supremo Tribunal Federal) alguém "terrivelmente evangélico" ao indicar o pastor André Mendonça para a Suprema Corte.

Já o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nem prometeu, mas indicou alguém terrivelmente conservador, a julgar pelas decisões iniciais do ministro Cristiano Zanin em menos de um mês de atuação.

Com votos contrários à descriminalização da maconha e da equiparação da homofobia e transfobia ao racismo, ao negar a anulação de uma condenação por insignificância do valor do delito (menos de R$ 100) e ser favorável à integração da Guarda Municipal ao sistema de segurança pública, Zanin demonstrou, em pouco tempo, representar o conservadorismo moral, punitivista e militarista, que impede as leis de protegerem os mais injustiçados.

Em um país onde o Estado comete violações e violências por meio do seu braço armado, gerando encarceramento em massa e altas taxas de letalidade policial, especialmente em comunidades pobres, os votos de Zanin só trazem desesperança a quem luta por justiça e direitos humanos.

Pelos votos de Zanin a situação deve continuar como está (ou até piorar): jovens pobres, em sua maioria, negros, encontrados em posse de maconha, são presos, e mesmo alegando serem usuários são acusados de envolvimento no tráfico e amontoados em presídios, esperando longos anos por um julgamento digno.

As truculentas abordagens policiais contra pobres e negros agora podem contar com o reforço das guardas municipais, subordinadas a prefeitos e líderes locais. É um Brasil de violações de direitos -- e somente quem está bem distante da realidade das periferias pode concordar com isso.

Bolsonaristas elogiaram Zanin

O porte de maconha para consumo próprio poderá deixar de ser crime no Brasil, mesmo contra a vontade de Zanin.

Será um primeiro passo no desmonte da chamada guerra às drogas, que tem gerado tantas mortes no país, especialmente nas comunidades mais pobres, em disputas de facções ou em operações policiais desastrosas.

Pode também reduzir a imensa população carcerária, pois boa parte do encarceramento no Brasil é justificada pela apreensão de drogas.

A votação no STF pela descriminalização da maconha segue com um placar de 5 a 1. O único voto contrário foi de Cristiano Zanin..

Os votos de Zanin em menos de um mês de atuação na Suprema Corte confirmam a postura conservadora do ex-advogado de Lula, que ganhou elogios de políticos da extrema direita como os senadores Hamilton Mourão (RS) e Damares Alves (DF) e de outros bolsonaristas.

Zanin votou contra anular a condenação de dois homens que furtaram um macaco de carro e galões de combustível, em um processo no qual a Defensoria Pública da União havia pedido anulação com base no princípio da insignificância pelo baixo valor do delito.

Zanin foi o único a votar contra a equiparação da homofobia e transfobia ao crime de injúria racial no julgamento de um pedido de ampliação feito pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos. Nove ministros votaram a favor do pedido da Associação, André Mendonça se declarou impedido e apenas Zanin foi contra.

Nesta sexta-feira (25), o voto de Zanin foi decisivo para o STF formar maioria e definir que guardas municipais integram os órgãos de segurança pública. Na prática, os agentes ligados a prefeituras municipais estão autorizados a realizar atribuições policiais como abordagens e revistas a lugares suspeitos, além de prisões em flagrante. O voto de Zanin desempatou a votação, que estava em 5 a 5.

Para quem já vive à sombra de violações de direitos no cotidiano de favelas, com atuação violentas e abusos de autoridades por parte de policiais militares, será mais um motivo para o medo.

Parece estranho que isso ocorra após a população brasileira eleger um projeto associado a pautas de direitos humanos, derrotando um governo de extrema direita que intensificou as violências contra a justiça e a democracia.

Mas a verdade é que Zanin nunca demonstrou ser diferente. O que ocorreu foi uma expectativa ilusória por parte de ativistas de esquerda.

A confiança do presidente e a celebração de militantes do Partido dos Trabalhadores pela atuação na defesa de Lula no processo da Lava Jato dispensaram Zanin de ser cobrado a se comprometer com pautas caras à esquerda.

PT da Bahia e a guerra às drogas

A manutenção da lógica de combate às drogas continua servido de justificativa para incursões policiais violentas em territórios de moradia de pobres e pretos. É o caso da Bahia, estado campeão em letalidade das operações policiais. Ranking que conquistou após o desastre das políticas de segurança pública de quatro mandatos sucessivos do PT.

O atual governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, segue a cartilha dos antecessores, Jaques Wagner e Rui Costa, apoiando as operações de morte da polícia, atrasando a incorporação de câmeras no fardamento e tentando convencer a população com novas viaturas. Tudo em nome da guerra às drogas.

Até mesmo o cruel assassinato da líder quilombola Maria Bernadete Pacífico entrou para a conta do tráfico de drogas no discurso do governador da Bahia.

Mesmo com todas as evidências e denúncias de conflitos pela terra e do incômodo que a militância de Bernadete causava nos poderosos da região, o governador escolhe a desculpa mais fácil e corriqueira de disputa do tráfico.

O pronunciamento de Jerônimo Rodrigues ignorou as ameaças que Bernadete já vinha recebendo de grileiros e fazendeiros, conforme ela mesma denunciou semanas antes de ser morta. Ignorou o assassinato do filho dela, Binho do Quilombo, há seis anos, também por lutar pelas terras quilombolas. Ignorou a fala do outro filho, que está vivo e já sentenciou: "serei o próximo".

O PT da Bahia confirma a afirmação de que 'O Estado só garante a morte', como disse Muniz Sodré sobre o crime contra Maria Bernadete

Punitivismo e pânico moral

Para o historiador Dudu Ribeiro, diretor da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, o voto de Zanin no julgamento da descriminalização da maconha decepciona, mas não surpreende.

Não é consolidado no campo progressista a perspectiva da superação da lógica da guerra às drogas. Há ainda uma presença significativa do teor punitivista e do pânico moral em relação aos usos de substâncias tornadas ilícitas também dentro do campo progressista.

Em seu voto, Cristiano Zanin reconhece discrepâncias na aplicação judicial do artigo 28, relacionado à Lei de Drogas, que leva ao encarceramento em massa de pessoas pobres, negras e de baixa escolarização. Contudo, para Zanin a descriminalização pode contribuir para agravar problemas de saúde relacionados ao vício.

Dudu Ribeiro aponta que o voto do ministro se afasta das principais elaborações científicas, que têm demonstrado como em países que adotaram a descriminalização ou ainda a legalização de algumas substâncias não houve aumento significativo do uso em nenhuma faixa etária.

"Muito pelo contrário, tem na verdade permitido o crescimento de equipamentos e políticas públicas voltadas para a proteção da saúde e geração de oportunidades", afirma Ribeiro.

Estado opta pelo combate e não o cuidado

Para o especialista, o ministro não compreende a necessidade de o Estado brasileiro rever as suas políticas no campo de atenção ao uso das substâncias tornadas ilícitas. "Reforça uma ideia de que temos que partir da proteção da saúde a partir do combate, e não do cuidado."

A organização Iniciativa Negra reúne estudiosos e apresenta pesquisas e análises sobre como a atual política de drogas contribui para um cenário de injustiças criminais e de aprisionamento em massa da população negra, resultando em violações de direitos e morte.

Entre as publicações está o relatório Iniciativa Negra por Direitos, Reparação e Justiça, publicado este ano e disponível no site da organização.

Mesmo sem contar com o voto de Cristiano Zanin é bem provável que o STF aprove a constitucionalidade do porte de maconha, o que para Dudu Ribeiro, é um pequeno avanço.

Apesar de oportuna e importante, a decisão do STF tem em si uma baixa capacidade de incidir de forma decisiva na reversão dos danos causados pela lógica encampada pelo Estado brasileiro há décadas, denominada Guerra às Drogas. A decisão pode ser encarada com a abertura de uma janela de possibilidades que amplia o debate na sociedade brasileira.

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Para Ribeiro, o debate deve avançar dentro do Executivo e do Legislativo a partir de uma perspectiva que seja favorável à proteção da saúde pública e que desmonte a perspectiva da atuação violenta do Estado.

Enquanto Cristiano Zanin segue revelando seu lado "terrivelmente" conservador, cresce a cobrança por diversidade na próxima indicação de Lula ao STF, na vaga da ministra Rosa Weber, que se aposentará nos próximos meses.

Para reverter os danos causados pela indicação do seu advogado pessoal, Lula deveria radicalizar no sentido contrário, indicando uma mulher negra, com perfil democrático e progressistas. Finalmente, assim, o órgão máximo da Justiça do Brasil poderá contar com o conhecimento de quem experimenta, no próprio corpo, as violações de direitos e as violências deste país.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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