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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Covid caminha para ser doença negligenciada no Brasil, dizem especialistas

Atendimento pelo SUS deve ser mais afetado com o fim da emergência  - Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Atendimento pelo SUS deve ser mais afetado com o fim da emergência Imagem: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Colunista do UOL

21/04/2022 04h00

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Perto do fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, como anunciou esta semana o Ministério da Saúde, a covid-19 está caminhando na direção de ser uma doença negligenciada no Brasil em um futuro breve.

Especialistas ouvidos pela coluna afirmam que não é momento do país baixar a guarda e rebaixar o nível de importância da covid-19 e dizem que isso vai impactar especialmente as pessoas que dependem somente do SUS (Sistema Único de Saúde). Eles temem também que as desigualdades sociais e regionais impactem na prevenção, testagem e assistência à saúde das pessoas.

Segundo definição da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), as doenças negligenciadas "são aquelas causadas por agentes infecciosos ou parasitas e são consideradas endêmicas em populações de baixa renda".

A lista de doenças negligenciadas no Brasil é grande, segundo classifica a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde), braço da OMS (Organização Mundial de Saúde) nas Américas.

Segundo a instituição, doenças como hanseníase, dengue, esquistossomose e doença de Chagas, por exemplo, estão na lista de pelo menos 20 patologias infecciosas negligenciadas que matam no país.

"As doenças infecciosas negligenciadas são um grupo diversificado de condições difundidas nas regiões mais pobres do mundo, onde a segurança da água, o saneamento e o acesso aos cuidados de saúde são precários", explica a Opas.

Para Isaac Schrarstzhaupt, coordenador na Rede Análise Covid-19, o termo doença negligenciada é usado para doenças "cujo combate não dá lucro" para os sistemas de saúde privados e laboratórios —nesse caso, tecnicamente, a covid-19 poderia não se enquadrar.

"Mas, ao mesmo tempo, quando vemos estados e países com coberturas vacinais baixas e coincidentemente os com mais baixa renda, nos deixa fazer esse uso do termo", diz.

O maior exemplo está na ideia de encerrar a emergência no Brasil sem levar em conta, por exemplo, particularidades regionais.

"No momento em que os grandes centros perceberam que conseguem 'conviver' com a doença, acaba tendo decretos de fim de emergência. O problema é que o decreto vale para o país, e aí quem não está com a cobertura vacinal boa acaba tendo seu risco aumentado", afirma.

Ao explicar o fim da emergência, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse nesta segunda-feira que a covid "não acabou e não vai acabar, e nós precisamos conviver com essa doença e com esse vírus. Felizmente, parece que o vírus tem perdido a força, tem perdido a letalidade, e cada dia nós vislumbramos um período pós-pandêmico mais próximo de todo mundo".

Mortes no país por doenças negligenciadas (2016-20):

  • Dengue - 1.682
  • Malária - 213
  • Leishmaniose - 1.621
  • Doença de Chagas - 21.847
  • Hanseníase - 735
  • Esquistossomose - 2.538
  • Raiva - 18

O microbiologista Átila Iamarino afirma que a covid-19 já possui várias interações que condizem com doenças negligenciadas. "Elas já permeiam nessa situação de desigualdade, que fazem com que a doença tenha impactos diferentes em diferentes tipos população", afirma.

A gente já tem uma camada da população que tem menos acesso à saúde, menos confiança no sistema de saúde, menos oportunidade para se vacinar, menos oportunidade de cuidado dos filhos --então são crianças que precisam ir à creche, as pessoas precisam continuar trabalhando e elas vão ter mais covid.
Átila Iamarino, microbiologista

Um dos exemplos da desigualdade pode ser visto nos marcadores de UTIs (unidades de terapia intensiva) que trataram pacientes com covid-19.

Segundo dados do projeto UTis Brasileiras, da Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), a mortalidade de vítimas da covid que precisaram de terapia intensiva durante a pandemia foi de 29,2% nos leitos privados, índice que sobe para 50,2% nos públicos. O projeto avaliou a internação de 210 mil pacientes até o último dia 19.

8.jun.2021 - Trabalho médico na UTI covid-19 do Hospital Estadual de Vila Alpina, na zona leste de São Paulo - Mister Shadow/ASI/Estadão Conteúdo - Mister Shadow/ASI/Estadão Conteúdo
8.jun.2021 - Trabalho médico na UTI covid-19 do Hospital Estadual de Vila Alpina, na zona leste de São Paulo
Imagem: Mister Shadow/ASI/Estadão Conteúdo

Para Iamarino, porém, ainda é cedo para que a doença seja considerada negligenciada no país, visto o impacto que ela ainda causa na saúde pública.

"A covid ainda gera uma perturbação grande demais no sistema de saúde e na vida das pessoas para ser tão negligenciada quanto outras doenças. E essa dinâmica deve continuar acontecendo num futuro próximo, pelo menos", diz.

Mas com o passar do tempo, ele diz acreditar que deve haver ainda mais privilégios, quanto maior a classe social. "A tendência é as pessoas que têm mais acesso à saúde e mais dinheiro tenham mais doses de reforço [da vacina], mais acesso a antivirais e tratamentos. As pessoas de regiões mais pobres e mais desinformadas vão sofrer mais. Então, a covid caminha para isso [ser negligenciada]", completa.

Ser endemia é bom?

A epidemiologista Anaclaudia Fassa, que é diretora da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e professora do departamento de Medicina Social da UFPel (Universidade Federal de Pelotas), afirma que há um erro de entendimento das pessoas quando se fala da covid-19 virar uma endemia.

"Houve melhorias do quadro sanitário, na cobertura vacinal, sim. Porém, a gente tem uma quantidade de óbitos muito alto. As pessoas pensam que a epidemia evoluir para endemia é uma coisa boa, mas isso depende", relata.

Endemia é quando se tem uma estabilização. Ela é boa quando o número de mortes é baixo, o que não é o caso. Temos hoje em média 100 mortes por dia. Se multiplicar para um ano, morreria três vezes mais gente de covid que de HIV, duas vezes mais que câncer de mama, o mesmo número que acidentes de trânsito.
Anaclaudia Fassa, epidemiologista

Para ela, a forma como a covid-19 será tratada no país depende das normativas e regras que vão ser editadas pelo governo após o fim da emergência —o que ainda não ocorreu.

"O impacto depende do que for feito na revisão dessas medidas. Temos de ver como são esses quadros", diz.

Fasso diz não ter dúvidas que, apesar dos problemas históricos, o SUS respondeu "superbem" à pandemia. Mas com fim da emergência e perda de verbas, ela teme haja um subfinanciamento no momento em que o país terá uma série de desafios pela frente.

"Temos aí a covid longa, a necessidade de campanhas vacinais, a busca de procedimentos que não foram feitos na pandemia, um avanço das doenças crônicas", explica.

Um dos maiores problemas que o país pode enfrentar, diz, é que o Brasil não estruturou uma rede capaz de perceber aumento de casos assim que eles começarem a ocorrer.

"Uma coisa que precisaria ter aprendido era a importância de uma vigilância epidemiológica. A gente teve um aumento nesse período, mas não foi uma estrutura que veio para ficar. Isso preocupa muitíssimo. A gente precisa identificar surto e novas epidemias", relata.

19.jam.22 - Centro de testagem em Manaus teve alta procura este ano - Rodrigo Santos/Secretaria de Saúde do Amazonas - Rodrigo Santos/Secretaria de Saúde do Amazonas
19.jam.22 - Centro de testagem em Manaus teve alta procura este ano
Imagem: Rodrigo Santos/Secretaria de Saúde do Amazonas

Cenário da pandemia ainda incerto

Como a covid-19 é uma doença nova, a professora de doenças tropicais da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) Vera Magalhães, afirma que ainda é impossível prever um cenário para o país e para o mundo nos próximos. "A gente não sabe o que vai acontecer", admite.

"Não sabemos se a covid agora está naquele período interepidêmico. Houve aqueles picos de casos, depois ficou em um platô, depois um novo pico. Agora, a gente não sabe se agora está enfrentando isso ou se realmente a gente está com um arrefecimento duradouro. Só o tempo dirá", pontua.

Ela pondera, porém, que a retirada da situação de emergência deve atingir em cheio o SUS, no caso de uma eventual necessidade de aumentar o número de atendimentos e leitos.

Um exemplo do impacto disso ocorreu em janeiro, quando o país enfrentou uma dupla epidemia de influenza e covid causada pela ômicron, o SUS enfrentou dificuldade inicial em atender a demanda, o que gerou uma corrida para abrir leitos de forma emergencial (que só foi possível graças ao estado de emergência).

"E agora teremos verbas que deveriam ser destinadas ao combate à covid que acabam com o fim da emergência. Isso impacta ainda mais as possibilidades do SUS [Sistema Único de Saúde] de enfrentar a pandemia, que ainda não acabou", relata.

Coberturas vacinais

Para Magalhães, o país ainda tem um número muito alto de pessoas não vacinadas ou com ciclos incompletos, que são suscetíveis a infecções caso a circulação viral ocorra com força novamente.

"Fico receosa porque as crianças de zero a quatro anos não foram vacinadas ainda. Além disso, apenas 38% dos brasileiros fizeram a dose de reforço. Isso é muito pouco", lamenta.

Hoje, no país, existe grande diferença de coberturas vacinais entre os estados. Os piores índices estão no Norte, onde estados como Roraima e Amapá têm apenas 12% de população vacinada com dose de reforço. Já em São Paulo, estado líder, esse percentual já bate 45%.

A biomédica e neurocientista Mellanie Fontes-Dutra concorda que um dos maiores problemas está na falta de coberturas vacinais.

"A insegurança é essa. Com a falta de equidade nas coberturas vacinais, por exemplo, temos o risco de ter regiões que seguirão com uma transmissão mais elevada do que outras, gerando impactos sobre elas e seu sistema de saúde", diz.

A luta por uma maior equidade na cobertura vacinal em diferentes locais, dentro e fora do Brasil, é para termos uma maior proteção dessas sociedades e gerar um impacto menor da doença e da circulação do agente infeccioso causador sobre ela.
Mellanie Fontes-Dutra, biomédica e neurocientista