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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Análise: Memória afetiva criou muro protetor de voto petista no Nordeste

14.out.2022 - Ato de campanha de Marília Arraes (Solidariedade) e Lula (PT) no Recife - Ricardo Labastier/UOL
14.out.2022 - Ato de campanha de Marília Arraes (Solidariedade) e Lula (PT) no Recife Imagem: Ricardo Labastier/UOL

Colunista do UOL

27/10/2022 04h00

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As investidas do presidente Jair Bolsonaro (PL) buscando o voto do eleitor do Nordeste no segundo turno parecem não estar surtindo efeito. No primeiro turno, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve dois de cada três votos válidos e as pesquisas de intenção de votos do segundo turno mostram que esse muro segue protegendo eleitoralmente o petista na região.

O Nordeste tem 10 milhões de famílias que recebem o Auxílio Brasil, quase metade dos 21,1 milhões do país. Mesmo com as inclusões em outubro e o aumento de R$ 200 no valor do benefício, pesquisas como a do Ipec do dia 24 mostram Lula com 72% das intenções de voto na região. O Datafolha dá 67%; enquanto a Quaest marca 69%. Segundo esses levantamentos, é a única região do país em que o petista vence.

A predileção ao PT é costumeiramente alvo de ataques preconceituosos de eleitores de outras regiões do país, como ocorreu após a votação do primeiro turno, em que Lula teve 66% dos votos na região. Bolsonaro, por sinal, só venceu em 15 cidades do Nordeste, sendo apenas uma capital: Maceió.

Mas o que faz o PT ser tão forte e resiliente na região desde 2006? A coluna ouviu cinco especialistas para entender o fenômeno. Eles citam de forma unânime que há uma "memória afetiva" das obras e políticas públicas criadas ou impulsionadas pelos governos de Lula e Dilma Rousseff e que atenderam especialmente o interior da região.

Para Luciana Santana, cientista política da Ufal (Universidade Federal de Alagoas), o voto no PT é "pragmático". "O eleitor do Nordeste tem a memória afetiva, leva em conta o que recebeu nos governos de Lula e o que está recebendo agora", diz.

Prova disso talvez seja que as vitórias do PT na região, com ampla vantagem, não são novidade. Ocorrem desde 2006, com a reeleição de Lula, e se mantém até hoje. Em 2018, o Nordeste foi responsável no segundo turno por 43% dos votos totais de Fernando Haddad (PT), o maior percentual registrado até aqui.

Santana diz que Bolsonaro errou ao imaginar que o nordestino se contentaria apenas com aumento no valor do Auxílio Brasil, sem levar em conta outras políticas sociais que ele abandonou ou reduziu drasticamente, como a construção de cisternas ou a distribuição de leite a famílias pobres. "Ele não coordenou outras ações, como políticas de saúde e de educação", afirma.

Vitor Sandes, cientista político da UFPI (Universidade Federal do Piauí), também aponta que o bom desempenho do PT ocorre em resposta às políticas implementadas para amenizar problemas históricos no Nordeste.

"Programas como o Bolsa Família e políticas no âmbito educacional, de saúde, além de políticas que facilitaram a aposentadoria do trabalhador rural, acesso à luz e à água. Essas e outras políticas reduziram a pobreza, garantiram acesso a postos de trabalho e melhorias das condições de vida", pontua.

Além de boas votações para presidente, a força do lulismo na região impulsionou a eleição de candidatos do PT ou apoiados por ele a governos. "Somente nesta eleição tivemos três casos bem claros em que o lulismo foi determinante nas viradas no Piauí, no Ceará e na Bahia. Foram campanhas fortemente ancoradas no lulismo e na herança de governos petistas", diz.

Lula em campanha em Fortaleza com senador e governador eleitos, Camilo Santana e Elmano de Freitas, do PT - Divulgação - Divulgação
Lula em campanha em Fortaleza com senador e governador eleitos, Camilo Santana e Elmano de Freitas, do PT
Imagem: Divulgação

Em 2002, o PT elegeu apenas um governador ou aliado no Nordeste. Em 2018, os nove estados elegeram petista ou coligados. Neste ano, no primeiro turno, todos os candidatos que terminaram na frente votaram em Lula.

Bolsa Família e mais políticas sociais

A cientista social Monalisa Torres, professora da UECE (Universidade Estadual do Ceará), lembra que essa é a primeira vez na história do Brasil que temos um candidato que foi e outro que é o atual presidente —o que facilita a comparação do eleitor.

"Aí entra um voto retrospectivo: se eu avaliei positivamente o governo, eu voto nele; se eu o rejeito, voto no seu adversário. É a lógica de uma eleição plebiscitária", explica.

Ela cita que, do ponto de vista de políticas públicas, o Bolsa Família ajudou pessoas a se emanciparem e também movimentou a economia de muitos municípios do interior. "Isso atingiu principalmente aqueles pequenos comerciantes", diz. "Mas não foi só isso, houve outras políticas associadas, como o Mais Médicos, que tratou da inclusão dessas famílias no acesso à saúde."

Usuários mostram cartão do programa Bolsa Família, programa criado por Lula e extinto por Bolsonaro - Victor Leahy/Governo de Alagoas - Victor Leahy/Governo de Alagoas
Usuários mostram cartão do programa Bolsa Família, programa criado por Lula e extinto por Bolsonaro
Imagem: Victor Leahy/Governo de Alagoas

O cientista político Adriano Oliveira, da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), afirma que, como o Brasil é um país muito heterogêneo, é natural que existam diferenças de votações por questões regionais.

"São regiões bem diferentes em torno de valores, crenças e desenvolvimento econômico. Isso, de antemão, já explica as diferenças de voto entre as regiões", diz.

Ele destaca que o Nordeste concentra boa parte dos eleitores com a menor renda, que se vê agraciada pela gestão de Lula. "É uma região com pequeno desenvolvimento, e foi na era Lula que os eleitores reconhecem que o Nordeste passou a se desenvolver."

Pesquisas qualitativas mostram, principalmente entre os eleitores pobres, que o ex-presidente Lula colocou o Estado à disposição do Nordeste, e consequentemente as políticas na área da educação, geração de empregos e oportunidades."
Adriano Oliveira, da UFPE

Quando se olham os dados da votação do primeiro turno, fica claro que é no interior que Lula e o PT encontram sua maior força.

Segundo Andrea Souza, coordenadora-executiva da ASA (Articulação Semiárido Brasileiro) —entidade que congrega mais de 3.000 entidades na região—, o semiárido nordestino mudou de perfil durante os governos petistas.

Entre os programas, ela cita o de cisternas, que foi lançado pela ASA e virou política de governo na era Lula e construiu mais de 1 milhão de equipamentos no Nordeste até 2018.

"De forma bem direta, a gente percebe os impactos positivos em relação às famílias quando elas têm acesso à água com a implementação de tecnologias sociais. Isso garante o armazenamento e o gerenciamento de águas e alimentos ali à sua disposição. Isso é um processo de autonomia."

No caso do programa de cisternas, Bolsonaro cortou a verba, o que fez despencar o número de equipamentos construídos com verba federal.

Outro impacto que ela cita é que ações governamentais fizeram com que a região ganhasse um processo coletivo de mobilização social. "O programa traz às comunidades uma forma de diálogo com as famílias na luta por políticas públicas, do reconhecimento do direito que elas têm."

Quando a gente fala das tecnologias de produção de alimentos, a gente fala da autonomia relacionada à segurança alimentar e nutricional. As mulheres, que não precisam mais carregar lata d'água na cabeça, destinam o seu tempo à organização e à melhoria de renda com a venda nos mercados a partir da produção de alimentos."
Andrea Souza, coordenadora-executiva da ASA

Cisterna entregue à escola da comunidade de São Francisco, em Nova Fátima (BA), em 2015 - MOC/Divulgação - MOC/Divulgação
Cisterna entregue à escola da comunidade de São Francisco, em Nova Fátima (BA), em 2015
Imagem: MOC/Divulgação

Números confirmam crescimento do Nordeste

Segundo análises econômicas, o Nordeste viveu um "boom" durante a primeira década do século. Um exemplo foram os empregos com carteira assinada: em 2000, eram 3,8 milhões de vagas formais; em 2010, já eram 6,5 milhões. Isso representa uma alta de 5,5% ao ano, aponta estudo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

"Cabe registrar que o crescimento dessa década consolidou-se a partir de 2004. A economia nacional, entre 2004 e 2010, expandiu-se a uma taxa média anual de 4,3%; e a economia nordestina a 4,7% ao ano".

Durante o governo Lula, segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), entre 2001 e 2012, o nordestino teve o maior ganho de renda entre todas as regiões, o que fez com a participação da base da pirâmide social caísse 66% para 45% —ou seja, mais de 20 milhões de pessoas deixaram a pobreza.

Com esse cenário, o PIB (Produto Interno Bruto) da região aumentou em participação nacional, saltando de 12,7% em 2004 para 13,5%, em 2010.

A mesma tendência de alta ocorreu com a quantidade de estudantes em cursos superiores. Em 2000, segundo dados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), o Nordeste tinha mais de 413 mil universitários. Em 2012, esse número saltou para 1,4 milhão.