Carlos Madeiro

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Opinião

Só sertanejo entende o medo de faltar água e a alegria de ver açude sangrar

A comemoração efusiva da população de Acari pela sangria do açude Gargalheiras, no sertão do Seridó potiguar, é uma prova da relação afetiva de amor e sofrimento do sertanejo com (ou sem) a água.

Não foi a primeira, nem será a última romaria para ver um reservatório sangrar. Já relatamos festas similares nesses últimos meses pela chegada da água no Ceará, em Pernambuco. Foi assim também na Paraíba, quando as águas da transposição do São Francisco chegaram.

A nova repercussão da festa do reservatório, porém, foi maior porque Gargalheiras foi usado como cenário do filme "Bacurau" (2019). Junto com a fama, brotaram questionamentos de quem não entende a importância da água para quem sofre historicamente com a falta dela —só o sertanejo (leia-se aqui morador do semiárido) sabe.

E aqui falo como um caruaruense, do agreste pernambucano, que encheu muitos baldes e teve tempo de banho monitorado por anos.'

A grandiosidade do Gargalheiras extrapola —e muito— o filme e símbolo. Ele cheio salva duas cidades de perderem, por tempo indeterminado, a água das suas torneiras, o que mata animais e plantações.

No início do ano, a previsão era de chuvas abaixo da média por causa do El Niño, que sempre reduz a precipitação no Nordeste. Acari e Currais Novos estavam à beira do colapso.
Paulo Sidney Silva, presidente do Instituto de Gestão das Águas do Estado do Rio Grande do Norte

Ou seja, água no sertão significa vida! Mas não só: ao longo de tantas décadas, a falta dela resultou na fuga de pessoas de suas casas. Elas nunca quiseram ir, mas ficaram reféns de tantos meses de chão seco. Faltava ela, a água.

A cheia do Gargalheiras e de outros semiárido adentro é uma vitória para quem viveu, entre 2012 e 2017, a mais longa seca já medida na história do semiárido. Em 2013, especialistas falavam que seria preciso ao menos uma década para se recuperar da seca naquele tempo.

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Não foram poucas as cidades que o UOL visitou nesse período mostrando populações inteiras abastecidas por carros-pipa. Quem não podia pagar enchia lata d'água no chafarizes públicos. Foram ANOS sem água na torneira.

Nesse período, até mesmo o maior açude do país, o Castanhão (CE), atingiu pela primeira vez seu volume morto.

Castanhão chegou ao volume morto em 2017
Castanhão chegou ao volume morto em 2017 Imagem: Everaldo Onofre/Governo Federal

E com a vida, a chuva no primeiro trimestre do ano alimenta outra tradição, o São João, maior manifestação cultural e religiosa do nordestino.

As chuvas desta quadra também indicam que vamos ter fartura de milho para as festas juninas. Esse é o período em que se planta não só milho, mas tantas outras culturas. É raro termos chuvas tão boas para agricultura e reservatórios, como esse ano aqui. Isso mexe com o nordestino.
Paulo Sidney Silva

Por tudo isso, a relação do sertanejo com a água é similar à com uma divindade: de tempos em tempos, ela é suplicada em orações e aparece para salvar da dor, da fome e, por vezes, da morte.

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Ir para as ruas comemorar é uma procissão de alegria, mas também de agradecimento à natureza. A rotina do nordestino no semiárido sempre foi guiada pelas vontades dela. Ninguém fora do semiárido vai entender, de verdade, o que é viver com medo de faltar água.

Os fogos, as orações e os banhos do Gargalheiras que sangra são sinais de que a vida brotou de novo, e é época de fartura. Para você, que nunca abriu uma torneira sem que ela tivesse água, pode parecer algo pequeno. Mas para quem vive da falta, tê-la é vida.

Então viva a água, a natureza e a relação celestial do sertanejo com água, seu bem mais precioso.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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