Carlos Madeiro

Carlos Madeiro

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Governo de PE anuncia câmeras para vigiar 'vadiagem', crime extinto em 1940

A Secretaria de Defesa Social de Pernambuco lançou em junho um edital para compra de 2.000 câmeras que vão vigiar, entre outras coisas, a "vadiagem", um crime previsto no Código Criminal de 1830, mas que foi retirado do Código Penal em 1940.

No ano seguinte, em 1941, a vadiagem foi incluída na Lei de Contravenções Penais, mas é considerada inaplicável por causa das garantias da Constituição de 1988.

Ela prevê uma pena de 15 dias a três meses, mas há raros exemplos de uso no país após a Constituição de 1988 —já que a aplicação dela até mesmo como contravenção é questionada pelas garantias dadas pela Carta Magna.

A vadiagem não pode mais ser considerada como sequer contravenção penal, uma vez que ela foge totalmente aos princípios morais e éticos vigentes no país no tocante à questão do direito ao trabalho e direito à liberdade de estar, ir e vir. A Constituição garante.
Welton Roberto, professor de direito penal da Ufal

Segundo tanto a lei de 1830 quanto a de 1941, a vadiagem é o ato de "entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita".

Uso errado da tecnologia

A denúncia da inclusão do termo foi feita pelo IP. Rec (Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife), que analisou o edital e apontou que o estado prevê comprar 550 licenças de um software que faz "detecção de vadiagem". Para isso, o governo pretende gastar R$ 1,1 milhão —cada câmera custará R$ 2.100.

Segundo Raquel Saraiva, presidente do IP.Rec, o uso de reconhecimento facial na segurança pública parte de uma premissa "de vigilância, opressão e discriminação contra pessoas negras e transgênero". "São elas que mais sofrem com os erros de reconhecimento, e está cheio de casos no Brasil e no mundo."

Para ela, o conceito de vadiagem é "completamente anacrônico."

Continua após a publicidade

Isso não cabe mais na nossa realidade. Incluir isso no monitoramento por câmeras é uma declaração de que o alvo é a população mais vulnerável da sociedade, as pessoas que vivem na rua sem qualquer amparo do Poder Público. Existe uma orientação já discriminatória.
Raquel Saraiva

Saraiva questiona o que seria um suposto flagrante em "estado de vadiagem" e diz que uma interpretação policial pode "tornar qualquer pessoa perambulando pela rua como um potencial criminoso."

Não faz o menor sentido e não cabe numa democracia, além de ser uma violação de privacidade em níveis nunca antes vistos.
Raquel Saraiva

A inclusão do termo, alega, levanta outras questões ligadas à forma como as forças policiais vão entender e tratar o que for classificado como vadiagem.

Qual a configuração que vai ser feita nas câmeras para reconhecer esse estado nas pessoas? Qual vai ser o protocolo adotado pelas forças policiais quando as pessoas forem 'flagradas' em estado de 'vadiagem'? Para onde elas vão ser levadas? O que vai acontecer com elas?
Raquel Saraiva

Técnica de reconhecimento facial tem falhas, dizem especialistas
Técnica de reconhecimento facial tem falhas, dizem especialistas Imagem: iStock
Continua após a publicidade

Termo vem do inglês, diz secretaria

Segundo a Secretaria de Defesa Social, a inclusão da vadiagem advém "do termo em inglês 'loitering' e também se traduz em português por 'perambulação'."

O órgão afirma que esse recurso será usado para "identificar comportamentos suspeitos ou uma situação incomum", os quais devem gerar um "alerta para a inteligência."

Na prática, o modus operandi de alguns criminosos é estudar o local, ficar 'perambulando' pela rua, por exemplo, onde cometerá o assalto, e essas atitudes consideradas suspeitas são também estudadas pelas forças policiais.
Secretaria de Defesa Social de Pernambuco

A secretaria ainda diz que outro exemplo descrito na licitação que também se aplica ao loitering é o do "veículo parado - o alvo parou na região de interesse por um período de tempo definido pelo usuário".

Sobre os casos de fragilidade no reconhecimento facial por parte das câmeras, a pasta afirma que ele "se baseia em fotos de foragidos." "A tecnologia é apenas um indicativo que auxilia as forças policiais, jamais funciona como veredito ou substitutivo da atuação das polícias", finaliza.

Continua após a publicidade

Vadiagem ainda pode ser penalizada?

Existem projetos de lei no Senado e na Câmara dos Deputados que retiram da Lei de Contravenções Penais o termo vadiagem. Em 2012, o plenário da Câmara aprovou proposta similar, mas ela acabou arquivada pelo Senado em 2019 em razão do término da legislatura.

O conceito penal de vadiagem tem quase dois séculos e remonta ao Brasil Império, quando a tipificação foi inserida na lei, em 1830.

A ideia de criminalizar era prender os ex-escravos. Já que ninguém oferecia emprego e eles ficavam pelas ruas, foi uma maneira de prender quem não estivesse trabalhando.
Welton Roberto

Código de 1830, época do Império
Código de 1830, época do Império Imagem: Biblioteca Nacional/Senado

O professor da Ufal diz que a vadiagem não pode mais ser tratada materialmente como conduta criminosa.

Continua após a publicidade

A liberdade de ação é protegida, é o que a gente chama de uma não absorção dessa conduta pela Constituição Federal de 1988. Logo, é uma prática totalmente inconstitucional por parte do aparato estatal.
Welton Roberto

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes