Potências cortam repasses, e ONU teme piora da crise humanitária em Gaza
A decisão de diferentes potências ocidentais de suspender recursos para a Agência da ONU para os Refugiados Palestinos (UNRWA) leva a cúpula da entidade internacional a temer um abalo profundo em sua capacidade de dar respostas às necessidades da população palestina em Gaza.
Ontem, a ONU anunciou que abriu investigações para examinar alegações de que alguns de seus funcionários podem ter participado dos ataques de 7 de outubro, liderados pelo Hamas contra Israel. A notícia levou o governo dos EUA a anunciar a suspensão do repasse de dinheiro para a agência que se dedica a cuidar dos refugiados palestinos, a UNRWA.
Um dia depois, os governos do Reino Unido, Canadá, Austrália, Finlândia e Itália adotaram a mesma estratégia, enquanto a UE considera qual decisão tomará.
O problema, segundo fontes da entidade, é que os anúncios foram feitos por alguns dos maiores doadores da agência, o que levou seus diretores a organizar encontros de emergência para tentar entender como ficam as contas da operação para atender a 2,2 milhões de pessoas em Gaza.
Juntos, os países que anunciaram a suspensão de recursos são responsáveis por grande parte do orçamento da instituição. Em 2022, por exemplo, a agência recebeu US$ 1,1 bilhão para suas operações. US$ 425 milhões vieram desses governos que agora optaram por suspender seus repasses. Se a UE for incluída, isso significaria mais US$ 114 milhões.
Eis o valor da contribuição de cada um dos governos que anunciaram a suspensão:
- EUA - 343 milhões de dólares
- Canadá - 23 milhões de dólares
- Reino Unido - 21 milhões de dólares
- Itália - 18 milhões de dólares
- Austrália - 13 milhões de dólares
- Finlândia - 7 milhões de dólares
O UOL apurou que, em encontros tensos, doadores alertaram à cúpula da ONU que exigiriam respostas, investigações e punições aos responsáveis. Do lado da ONU, o apelo foi para que os recursos não fossem suspensos, antes de se determinar a dimensão real da crise e a quantidade de funcionários envolvidos.
A entidade também destacou que, em mais de cem dias de conflito, ela perdeu mais de 150 de seus funcionários na guerra, um número inédito para a ONU.
Imediatamente, na esperança de evitar uma sangria de recursos, a agência revelou que abriu uma investigação sobre vários funcionários suspeitos de envolvimento nos ataques de 7 de outubro em Israel e que demitiu essas pessoas. "As autoridades israelenses forneceram à UNRWA informações sobre o suposto envolvimento de vários funcionários da UNRWA nos terríveis ataques a Israel em 7 de outubro", disse Philippe Lazzarini, Comissário Geral da UNRWA.
"Para proteger a capacidade da agência de prestar assistência humanitária, tomei a decisão de rescindir imediatamente os contratos desses funcionários e iniciar uma investigação para estabelecer a verdade sem demora", afirmou.
Mas, dentro da agência, há um temor de que a crise possa ser usada como o argumento que o Ocidente esperava para justificar um esvaziamento da agência. A preocupação é ainda de que novos parceiros possam anunciar suspensões de repasses nos próximos dias.
Para o secretário-geral da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Hussein al-Sheikh, disse que a decisão dos países "acarreta grandes riscos políticos e de ajuda humanitária".
"Neste momento específico e à luz da agressão contínua contra o povo palestino, precisamos do máximo apoio a essa organização internacional e não interromper o apoio e a assistência a ela", disse ele, pedindo aos países que "revertam imediatamente sua decisão".
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JAMIL CHADE
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A crise financeira se soma a uma tensão latente que existia entre a cúpula da ONU e algumas das principais potências Ocidentais. A principal queixa de europeus e americanos se referia ao fato de que a entidade ter dado ampla publicidade aos crimes cometidos por Israel em Gaza, e de ter alertado sobre as violações.
As autoridades de Israel chegaram a pedir a demissão do secretário-geral da ONU, António Guterres, quando o português sugeriu que a crise deveria ser avaliada de uma forma mais ampla e que levasse em consideração a repressão contra os palestinos ao longo de décadas.
Crise crônica
Dados obtidos com exclusividade pelo UOL revelam que a crise financeira já era profunda nos últimos meses e, mesmo diante de um apelo internacional, os recursos continuam muito abaixo do que eram necessários para sair ao socorro dos palestinos.
Pouco antes de Gaza se tornar o centro das atenções do mundo, a UNRWA já estava criticamente subfinanciada e, até o final de 2022, o buraco em seu orçamento era de enormes proporções. Para a operação de 2022, por exemplo, ela havia solicitado US$ 1,8 bilhão, mas recebeu apenas US$ 1,1 bilhão. Em 2023, o financiamento era de apenas 40%.
Depois que a crise entre o Hamas e Israel eclodiu, a ONU fez um apelo geral por US$ 1,2 bilhão. Mas conseguiu arrecadar apenas 58% do valor.
Se a crise envolve diretamente as potências ocidentais, para muitos dentro da organização um dos desafios tem sido convencer as ricas nações petrolíferas do Golfo e os membros da Liga Árabe a contribuir.
O debate passou a ser intenso, principalmente diante da cobrança que existe em relação à solidariedade entre os países árabes. Até abril de 2023, a agência havia recebido US$ 431 milhões. Mas apenas US$ 10 milhões vinham da Turquia, US$ 2 milhões da Jordânia e US$ 1 milhão do Líbano. Em contraste, a UE enviou US$ 87 milhões, enquanto o governo Biden pagou mais de US$ 53 milhões para a agência.
Essa tendência tem sido registrada nos últimos anos. Em 2022, por exemplo, o governo saudita enviou US$ 27 milhões para a UNRWA, tornando-se apenas o 8º maior doador. A lista também inclui a Turquia, com US$ 25 milhões, o Kuwait com US$ 12 milhões e o Qatar com US$ 10 milhões, o 20º maior doador.
Orçamento de 2022 foi apoiado principalmente pelo Ocidente
A administração de Biden enviou US$ 342 milhões, seguida por US$ 202 milhões dos alemães e US$ 114 milhões da UE. O mesmo padrão foi identificado em 2021, quando os países árabes apareceram apenas de forma modesta na lista de doadores da agência.
A situação tornou-se crítica, no entanto, a partir de 2018. Naquele ano, o governo Trump decidiu congelar todo o financiamento da instituição, cortando mais de US$ 65 milhões.
Naquele momento, o chefe da Liga Árabe, Ahmed Aboul Ghent, afirmou que a decisão dos EUA tinha como objetivo acabar com toda a questão dos refugiados palestinos. "Essa decisão afeta a educação e a saúde dos palestinos e tem como objetivo erradicar a questão dos refugiados", Ahmed Aboul Gheit.
Naquela época, o financiamento dos doadores árabes para a Agência representava um quarto de seu financiamento total. Mas, desde então, ele caiu maciçamente, aprofundando gravemente a crise financeira da agência.
Em 2020, cabia aos europeus manter a organização funcionando. Naquele momento, o regime saudita só enviou US$ 28 milhões para a UNWRA, enquanto a Turquia deu outros US$ 20 milhões.
A guerra na Ucrânia, a pandemia de covid-19 e um escândalo de corrupção em 2019 na agência também não ajudaram.
Em maio de 2023, a pedido do secretário-geral da ONU, o comissário-geral da UNRWA, Philippe Lazzarini, compareceu à Cúpula da Liga Árabe em Jeddah para pedir dinheiro e pediu urgentemente que os estados árabes ricos restabelecessem ou aumentassem seu apoio financeiro enquanto a agência lutava.
"O apoio aos Refugiados da Palestina é uma obrigação coletiva, inclusive dos países árabes", disse ele. "Parceiros históricos de longa data diminuíram seu financiamento nos últimos anos, o que afetou drasticamente nossa capacidade de manter a qualidade dos serviços prestados", alertou.
Agora, a entidade teme que sua situação fique ainda mais insustentável.
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