Jamil Chade

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Reportagem

Brasil poupou Maduro em órgãos internacionais e silenciou diante de crimes

A aposta do governo de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições venezuelanas como forma de superar a crise política no país vizinho levou a diplomacia brasileira a silenciar por meses nos debates e reuniões internacionais envolvendo as denúncias de crimes e repressão cometidos pelo governo de Nicolás Maduro.

Nesta semana, o venezuelano sugeriu que haveria um "banho de sangue" caso ele não fosse eleito. O Itamaraty optou por não se pronunciar e Lula, nesta sexta-feira, não condenou a fala de Maduro.

Não se trata apenas de um posicionamento isolado por parte do governo Lula. Longe dos palanques, a diplomacia brasileira tem tido justamente uma atitude de omissão e silêncio ao longo de todo o ano, nos debates na ONU quando existem denúncias contra Maduro. A lógica de não engrossar os ataques é a de permitir que haja um espaço para conseguir convencer o presidente venezuelano a realizar um pleito transparente e justo.

Após um acordo em 2023, em Barbados, Caracas aceitou realizar uma eleição em julho com a participação de membros da oposição e com a promessa de que seria um pleito transparente e justo. Maduro chegou a indicar que aceitaria o monitoramento internacional e, em troca, esperava que as sanções impostas por europeus e americanos fossem retiradas.

A eleição é a grande aposta também do governo Lula para permitir uma normalização da relação da Venezuela com o restante da América do Sul e frear o fluxo de refugiados e imigrantes, que supera a marca de 6,1 milhões de pessoas.

Houve apenas um momento, no início de 2024, em que o governo brasileiro emitiu uma nota pública criticando Maduro.

Documentos revelam preocupação de órgãos de direitos humanos

Cartas internas e inquéritos da ONU revelam que a Venezuela não caminhou no sentido que se esperava. As autoridades venezuelanas são acusadas de violar o entendimento de 2023, o que levou a UE a renovar as sanções. Como resposta, Maduro desconvidou os europeus e anulou o monitoramento da eleição por parte da UE.

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No início de julho, em Genebra, o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos pediu que Caracas "adotasse medidas para garantir um processo eleitoral transparente, inclusive e com completa participação". Alertou ainda para o fato de a Justiça ter desqualificado duas figuras da oposição em janeiro e outras cinco pessoas em abril.

Tratava-se de um informe anual da ONU sobre a situação venezuelana, repleto de duras críticas em relação aos ataques contra a oposição, às vésperas da eleição.

A entidade também destacou que recebeu informações sobre a interferência da Justiça sobre partidos políticos e indicou sua preocupação diante de medidas tomadas para impedir o direito de participação da oposição em assuntos públicos, inclusive com a prisão de 15 membros de cinco partidos diferentes.

A proteção do espaço cívico é crítico para a restauração da confiança entre o povo e as instituições, em especial diante do processo eleitoral.
Trecho de informe da ONU

O levantamento documentou restrições indevidas à liberdade de expressão, incluindo o fechamento de dez estações de rádio em um ano, além de 21 outras que tinham sido já retiradas do ar antes de maio de 2023. Recursos apresentados por parte de emissoras foram ignorados ou rejeitados e a ONU alerta sobre atos sem que a motivação legal seja explicada. Também foram registrados pelo menos 50 websites que foram bloqueados sem notificação prévia.

Diante da conclusão da ONU, o governo brasileiro tomou a palavra e fez um apelo para que a eleição marcada para o dia 28 deste mês tenha garantias da participação de "todos os atores" políticos do país. Mas o Itamaraty evitou criticar a repressão e as medidas adotadas pelo governo de Maduro e insistiu que sobre a necessidade de que as sanções impostas por americanos e europeus sejam suspensas.

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O governo brasileiro também fez uma alusão à necessidade de que a eleição conte com observadores internacionais. No mês passado, Maduro vetou a participação dos europeus, depois de Bruxelas ter ampliado as sanções contra a Venezuela.

"É fato que o processo político interno da Venezuela compete com o próprio povo venezuelano. O Brasil reafirma seu firme apoio à plena implementação dos Acordos de Barbados, ao fortalecimento de uma democracia inclusiva na Venezuela, com uma cultura de tolerância e convivência política, e ao processo eleitoral com todas as garantias, inclusive a participação de observadores internacionais", disse o governo brasileiro.

ONU denunciou repressão e intimidação

Em março de 2024, também no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil já havia chamado a atenção de europeus, americanos e latino-americanos ao evitar criticar Maduro, mesmo diante de evidências de crimes apresentados pelos inquéritos das Nações Unidas.

No dia 19 de março, o governo brasileiro fez uma intervenção na ONU e pediu que a Venezuela realizasse eleições transparentes e com "todos os atores". Mas não fez qualquer referência às acusações apresentadas pela entidade internacional que apontavam para repressão no período eleitoral, intimidação de opositores e prisões arbitrárias.

Ao tomar a palavra durante a reunião no Conselho de Direitos Humanos, a delegação do Itamaraty afirmou que o Brasil favorecia "a cooperação do governo da Venezuela com o Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, assim como o aprofundamento do diálogo com os mecanismos do Conselho de Direitos Humanos".

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Sem citar o fato de Maduro ter expulsado os funcionários da ONU no início do ano, o Itamaraty fez um malabarismo diplomático e se limitou a dizer que "estima que se possa retomar as bases desta importante cooperação no mais breve período possível".

Em seu discurso, uma vez mais o Brasil optou por não fazer acusações, apesar das decisões em Caracas inviabilizarem a candidatura de certos opositores. O Itamaraty apenas "reafirmou a importância de eleições transparentes e inclusivas, com a participação de todos os atores venezuelanos".

Naquele momento, a única crítica feita pelo governo Lula foi contra as "medidas coercitivas unilaterais impostas contra a Venezuela, que tem um forte impacto sobre direitos humanos, incluindo o direito à alimentação".

Brasil não aderiu à declaração regional de críticas

O Brasil, ao tomar tal postura, se distanciou de parte significativa dos governos da região.

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Brasília não aderiu a um comunicado conjunto feito por Paraguai, Argentina, Chile, Canadá e outros países da região. O grupo criticou a expulsão da ONU de Caracas e afirmou estar "preocupado" com as restrições ao espaço cívico diante das eleições de julho, criticou as prisões arbitrárias e insistiu que é um direito fundamental a participação de todos na "vida política e na eleição".

Naquela reunião, a delegação da UE também se disse "preocupada com a repressão contra defensores de direitos humanos" e membros da oposição. O governo francês de Emmanuel Macron "condenou" prisões e torturas, além de ataques ao estado de direito.

A delegação do EUA também criticou Maduro e pediu que a opositora Corina Machado seja autorizada a concorrer às eleições. A Casa Branca indicou que está "profundamente preocupada com o fechamento do escritório da ONU" em Caracas e pede que "todos os prisioneiros políticos sejam liberados".

Washington ainda criticou os "ataques contra jornalistas, sindicalistas, a oposição e defensores de direitos humanos".

Na América do Sul, Uruguai, Equador e Peru atacaram os abusos cometidos por Maduro. O Chile, liderado por um governo de esquerda, citou as violações de direitos humanos em Caracas, além da prisão e inabilitação de membros da oposição.

Durante a reunião, porém, o governo de Maduro recebeu o apoio de diversos governos qualificados como regimes autoritários. China, Cuba, Rússia, Nicarágua e Irã elogiaram o venezuelano, enquanto o Zimbábue pediu que o mundo "reconheça" os avanços em Caracas.

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Inquérito mostrou crimes e violações

Naquela mesma semana, uma comissão internacional de inquérito, criada pela ONU, concluiu que Maduro "reativou a modalidade mais violenta da repressão", apresentou ao público a suposta existência de conspirações fictícias contra sua autoridade e adotou posturas que ameaçam as eleições de julho.

A missão formada por três especialistas internacionais indicou graves abusos de direitos humanos por parte das forças de ordem, impunidade diante dos crimes e "dificuldades" para que os acordos para a realização das eleições sejam respeitados pelo governo bolivariano.

Segundo o documento, a "estrutura repressiva do Estado não havia sido desmantelada e continuava a representar uma ameaça latente que poderia ser ativada sempre que o governo considerasse necessário".

A apuração liderada por Marta Valiñas indicou que "os inúmeros eventos registrados durante o período desta atualização confirmam que estamos enfrentando uma fase de reativação da forma mais violenta de repressão por parte das autoridades". Isso inclui violações de direitos humanos contra pessoas que se opõem ao regime, inclusive "defensores de direitos humanos que ousam criticar, denunciar ou protestar contra decisões ou políticas do governo".

Para a missão, essas ações destacam "as sérias dificuldades em garantir que as próximas eleições presidenciais sejam conduzidas de acordo com o direito de participação em assuntos públicos, conforme previsto no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos".

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Marta, em sua apresentação, destacou ainda que as autoridades venezuelanas passaram a invocar "conspirações" reais ou fictícias para intimidar, prender e processar oponentes ou críticos do governo.

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