EUA criticaram militares pelo caso de Vladimir Herzog e temeram repressão
O governo americano criticou o comportamento do regime militar brasileiro (1964-1985) no caso da morte de Vladimir Herzog. Telegramas obtidos pelo UOL revelam que a morte de Herzog mobilizou a atenção da diplomacia dos EUA.
Em documentos internos do Departamento de Estado em meados da década de 1970, a diplomacia dos EUA apontou as falhas nas investigações oficiais sobre o assassinato do jornalista que, no ano que vem, completa 50 anos. A Casa Branca ainda deixou claro que temia um endurecimento da repressão depois da reação da opinião pública.
Em 24 de outubro de 1975, após ter sido procurado por militares na TV Cultura, Herzog compareceu espontaneamente para depor na sede do DOI-Codi/SP (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna), na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Ali, foi assassinado.
Os militares forjaram uma versão de suicídio, que não se sustentou e levou uma multidão à Catedral da Sé para a missa de sétimo dia da morte do jornalista. O ato se transformou num marco na luta pela democracia.
As críticas americanas foram feitas ainda sob o governo de Gerald Ford. A partir de 1977, a situação entre Brasil e EUA ficaria ainda mais tensa, com Jimmy Carter e o regime militar escancarando profundas diferenças em relação aos direitos humanos.
"O Exército divulgou em 20 de dezembro o resumo do relatório final da investigação de dois meses sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrido durante a detenção em São Paulo, com base no testemunho de especialistas médicos, colegas jornalistas e prisioneiros, familiares e conhecidos da comunidade judaica de São Paulo", explicou a embaixada dos EUA em Brasília para sua sede, em Washington. O telegrama foi redigido de 23 de dezembro de 1975.
"O relatório confirma a explicação militar inicial de que o suicídio foi totalmente voluntário, descartou a possibilidade de crime e não encontrou evidências de maus-tratos. O relatório também aponta o testemunho de que Herzog era membro do Partido Comunista com histórico de tratamento psiquiátrico", afirma o documento.
Mas a conclusão dos americanos foi crítica em relação à apresentação dos resultados.
Ninguém realmente esperava que o Exército se acusasse, e ninguém está surpreso com os resultados da investigação.
Trecho de telegrama de 1975 da embaixada dos EUA em Brasília para Washington
Segundo eles, os militares "não ofereceram uma explicação" sobre o motivo do suposto suicídio.
"Até o momento, a reação ao relatório tem sido escassa e silenciosa. Uma explicação parcial para isso pode estar no momento da divulgação do relatório, durante o período de calmaria pré-natalina, quando o Congresso e as universidades estão em recesso e grande parte do Brasil está de férias ou se antecipando a elas. A reação da imprensa até o momento, particularmente a do Estado de São Paulo, que deu grande destaque ao caso Herzog quando ele ocorreu em outubro, tem sido, talvez significativamente, abafada", avaliou.
"Embora não descartemos o desestímulo do governo aos comentários editoriais, também é possível que os observadores da imprensa sintam que o informe fala por si só e que seria imprudente e inoportuno fazer comentários e inútil questionar publicamente a palavra de oficiais militares seniores", indicaram os diplomatas americanas.
Os observadores do Departamento de Estado ainda apontam como "o depoimento das testemunhas parece ter sido altamente condensado e é notavelmente uniforme". "Não há nenhuma indicação de que o processo de investigação tenha permitido um contraponto ou uma abordagem adversária", constatam.
O relatório não contém nem mesmo um mínimo de reprovação às autoridades por simples negligência, o que poderia ter lhe dado maior equilíbrio.
Trecho de telegrama, com rara crítica, enviado da embaixada dos EUA em Brasília para sua sede em Washington
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberO telegrama conta como os advogados contratados pelo sindicato dos jornalistas fizeram uma declaração apontando sua incapacidade de comentar o relatório, uma vez que não lhes foi permitido ver as transcrições originais dos depoimentos.
Os americanos destacaram que o relatório observa que, conforme o código de julgamento penal militar, os advogados não tinham permissão para estar presentes na tomada de depoimento.
Os depoimentos enfatizam que promotores de um caso "nunca ordenam que uma investigação seja arquivada até que todas as possibilidades de descobrir a verdade tenham sido esgotadas".
Governo americano temeu por maior repressão
Meses antes, no dia 31 de outubro de 1975, outro telegrama da embaixada dos EUA para o Departamento de Estado revelava o temor de que a reação contra os militares por conta da morte de Herzog levasse a um ofensiva do regime contra os dissidentes.
"Um tratamento tão detalhado e crítico de um caso de direitos humanos não tem precedentes na história recente do Brasil, e esse fato, juntamente com o esforço inicial do exército para parecer receptivo, sua aceitação implícita do princípio da responsabilidade, é digno de nota no contexto da questão dos direitos humanos no Brasil", afirmou a delegação americana .
Os efeitos do caso sobre essa questão, entretanto, e sobre a questão mais ampla do desenvolvimento político aqui, não serão necessariamente positivos.
Trecho de telegrama da embaixada americana ao governo dos EUA
"Por um lado, os setores que pressionam por um melhor desempenho em relação aos direitos humanos e a oposição mais geral à revolução ganharam um ponto focal efetivo para seus esforços, aumentando assim o combustível e o ímpeto de sua causa. Por outro lado, a inclinação da revolução será a de resistir, considerar que a explicação do exército não está sujeita a questionamentos", disse.
Para eles, o direito dos órgãos de segurança de realizar seus esforços antissubversivos livre de supervisão "externa" e a preservação do princípio de que a revolução não pode ser "colocada no no banco dos réus" foram elementos "essenciais na campanha de pressão das forças conservadoras para acabar com a dissensão".
O telegrama revela como a imprensa noticiou de Brasília que fontes militares declararam que os órgãos de segurança não permitiriam que "a reação legítima das associações de jornalistas se transformasse em um protesto mais generalizado e emocional que serviria à causa comunista e perturbaria a ordem pública".
Para os americanos, a questão era se o ímpeto da indignação pública com o aumento da repressão seria "capaz de se sustentar, alterando assim a equação política básica aqui, ou se será forçado a recuar diante da forte resistência revolucionária".
"A última hipótese parece muito mais provável por vários motivos", consideraram os americanos. Um dos argumento era de que o MDB estaria adotando uma "abordagem prudente". De outro lado, o governo iria "sufocar" a expressão de opiniões contrárias e alertando contra reuniões que pudessem perturbar a ordem pública.
Para Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, esse documentos mostram que, meio século depois da morte de Vladimir Herzog, ainda não se conhece a história completa sobre a ditadura militar no Brasil.
"Isso revela o quanto ainda precisa ser pesquisado e a importância da compreensão de que esse processo ainda não acabou", disse Sottili.
Dever patriótico dos jornais
"Um jornalista nos disse que foi solicitado aos jornais que enviassem representantes ao serviço nacional de inteligência, e aqueles que foram receberam instruções de uma série de 'coronéis'. A tônica da abordagem, que foi discreta, foi que a situação em São Paulo é indevidamente tensa, que há envolvimento comunista, que o governo está se movendo para cuidar da situação e que o dever patriótico dos jornais é evitar inflamar a situação", apontou o telegrama.
Para os EUA, "o efeito líquido a curto prazo do caso pode muito bem ser uma intensificação dos controles governamentais, ou seja, uma redução do nível de liberdade política aqui".
O que também parece possível neste momento, no entanto, é que a preocupação ampliada com os direitos humanos ou, de forma mais ampla, o sentimento oposicionista despertado pelo caso, não será facilmente dissipado.
"Sugerimos que o caso, ou mais especificamente a mancha que ele representa na reputação do exército, pode vir a ser útil para Geisel e seus aliados na tentativa de colocar o aparato de segurança sob controle", completou o telegrama.
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