Leonardo Sakamoto

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Opinião

Empresário ignora escravizados torturados com choque e vende mentira na ONU

Os brasileiros acompanharam o drama de 207 trabalhadores resgatados da escravidão na cadeia da produção do vinho em Bento Gonçalves (RS) em fevereiro do ano passado. O caso era grotesco: eles foram vítimas de ameaças e agressões, incluindo o uso de choques elétricos e spray de pimenta, tendo sido presos por dívidas ilegais.

Atuavam para uma prestadora de serviço contratada pelas vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi. Tanto que as empresas se comprometeram com ações para evitar que isso se repita e arcaram com indenizações.

Mesmo assim, indo contra os fatos e as provas e colocando em risco os esforços nacionais para mostrar que o país está combatendo esse crime, o chefe da delegação empresarial brasileira na conferência anual da Organização Internacional do Trabalho insinuou que não houve crime e isso foi "uma distorção da aplicação das legislações trabalhistas".

As declarações de Gedeão Silveira Pereira, segundo vice-presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) revoltaram representantes da delegação dos trabalhadores e do governo, nesta segunda (10), em uma reunião de preparação. E foi rebatida pelo ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho. Jamil Chade, no UOL, obteve o áudio da fala dele.

Mas Pereira foi além. Reproduzindo clichês negacionistas, ele afirmou que escravidão é coisa dos confins da Amazônia e não de uma região rica como o Rio Grande do Sul. Nem a CNA, histórica crítica dos resgates de trabalhadores do grupo especial de fiscalização móvel, costuma ir tão longe.

Todas as unidades da federação, ricas e pobres, já registraram a ocorrência desse crime desde 1995, quando o Estado brasileiro criou o sistema de combate a esse crime. E, segundo dados oficiais, o Rio Grande do Sul foi o quarto com maior número de escravizados resgatados em 2023, atrás de Goiás, Minas Gerais e São Paulo. Dentre os resgatados, trabalhadores que atuavam em fazendas de arroz - grão que o próprio Pereira afirma produzir nesse estado.

A operação em Bento Gonçalves teve início após um grupo fugir de um alojamento sem condições de higiene onde, segundo relataram, sofriam agressões com choques elétricos e spray de pimenta. A fiscalização apreendeu tasers e tubos de spray de pimenta no local. Vigilância armada era usada para garantir que tudo permanecesse do jeito que o patrão queria.

As vítimas eram ameaçadas com frequência. Algumas foram informadas que, caso faltassem ao trabalho por questões de saúde, teriam que pagar todos os custos de transporte desde a Bahia - 93% eram provenientes do estado. Isso fez com pessoas trabalhassem mesmo doentes.

"Um cassetete era usado para manter o portão do alojamento aberto, o mesmo cassetete que depois era empregado para bater nos trabalhadores", conta o auditor fiscal do trabalho Rafael Zan, que estava na operação. Era uma forma de o empregador impor sua disciplina aos trabalhadores. Foi constatada a presença de trabalhadores machucados, evidenciando maus tratos.

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Recrutados na Bahia, eles já chegavam com dívidas de alimentação e transporte e, no alojamento, tinham que comprar produtos a preços muito acima do valor de mercado. Tudo isso era anotado como dívida, o que prendia os trabalhadores aos patrões. Quando receberam a proposta de emprego, foi prometido a eles bons salários e condições de serviço, como alimentação e alojamento decentes - o que não veio a acontecer. A jornada de trabalho, segundo a fiscalização, chegava a ir das 4h às 21h.

Para piorar, quem não tinha dinheiro pegava empréstimo a juros que chegavam a 50% durante a safra de um outro aproveitador para poderem comprar itens de primeira necessidade.

Do total de resgatados, 95% eram negros - o que diz bastante sobre o racismo estrutural e a herança de uma abolição que não garantiu acesso a terra aos ex-cativos. Na Bahia, conversei com algumas das vítimas desse caso das vinícolas, que confirmaram o terror que foi o período em que foram exploradas.

Participaram da operação na época, além do Ministério do Trabalho e Emprego, o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Federal. A assistência social do município e a Secretaria de Justiça do Rio Grande do Sul deram apoio no processo de acolhimento de vítimas.

Representante dos empregadores culpou Bolsa Família

Pereira ainda culpou o Bolsa Família pela situação, ao falar da dificuldade de encontrar mão de obra. Ecoa, dessa forma, uma nota divulgada logo após o resgate na produção do vinho do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (RS) - que relacionou o caso ao pagamento de benefícios sociais a trabalhadores pobres.

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O centro afirmou que o ocorrido tinha conexão com "a falta de mão de obra e a necessidade de investir em projetos e iniciativas que permitam minimizar este grande problema". Para os empresários representados pela nota, "há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade".

Ou seja, na opinião da entidade, o pagamento de benefícios sociais tem produzido pessoas "inativas" que poderiam estar sendo envolvidas na cadeia produtiva do vinho ou do arroz, o que reduziria a necessidade de contratação de mão de obra de fora. "É tempo de trabalhar em projetos e iniciativas que permitam suprir de forma adequada a carência de mão de obra", disse a nota.

Ignorar o problema é mau negócio para o Brasil

O Brasil é considerado pelas Nações Unidas, e por sua agência dedicada ao trabalho, como um exemplo global no combate à escravidão exatamente por não ter se furtado a enfrentar o problema pelo viés econômico. Sim, o modelo de combate a esse crime no Brasil é visto por outras nações como referência.

Mas, nos últimos anos, ele vem enfrentando problemas exatamente por conta dos ataques de atores econômicos interessados em aumentar sua capacidade de concorrência e sua lucratividade arrancando o couro do lombo dos trabalhadores.

Esses grupos encontraram o terreno fértil para crescer durante os anos Bolsonaro, mas continuam pressionando. O comportamento de Pereira na ONU é prova disso.

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Mas, ao contrário do que ele imagina, esse tipo de ação tem potencial para minar a imagem do Brasil como referência no combate a esse crime. E, a partir do momento que o mundo tiver evidências de que os produtos agropecuários e extrativistas brasileiros não estão mais protegidos pelo sistema de combate ao trabalho escravo, boicotes e, pior, desinvestimentos serão implementados. Não importa que os bloqueios sejam hipócritas e com pseudojustificativas sociais, eles virão.

Ou seja, o representante patronal, acima de tudo, faz um desserviço ao próprio país.

O trabalho escravo contemporâneo não é resquício de modos de produção arcaicos que sobreviveram ao capitalismo. Trata-se de um instrumento utilizado por empreendimentos para potencializar seus processos de produção e expansão. A superexploração do trabalho, da qual o trabalho escravo contemporâneo é a forma mais cruel, é deliberadamente utilizada em determinadas regiões e circunstâncias como ferramenta. Sem ela, empreendimentos atrasados não teriam a mesma capacidade de concorrer numa economia globalizada.

Em outras palavras, há empregadores que se valem desse expediente para ganhar competitividade, de forma desleal, no mercado - uma espécie de "dumping social". Já outros se aproveitam dessa alternativa tão somente para aumentar suas margens de lucro.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL