Leonardo Sakamoto

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Opinião

Para atacar padre Júlio, Câmara de SP tenta inibir doação de comida a pobre

No fundo do poço, há sempre um alçapão. E, nesta semana, o alçapão fica em São Paulo. A Câmara dos Vereadores da capital aprovou em primeira votação um projeto de lei que dificulta a doação de comida a miseráveis. Sim, é isso mesmo que você leu: São Paulo validou o PL para Promoção da Fome.

Em termos de perversidade, isso está pau a pau com uma portaria do governo Temer, de outubro de 2017, que tentou dificultar o resgate de trabalhadores escravizados. Espera-se que o PL paulistano tenha o mesmo destino da portaria federal, ou seja, a lata do lixo.

Para doar comida à população em situação de rua, as pessoas físicas ou jurídicas interessadas terão que receber autorização prévia da prefeitura após apresentar uma penca de documentos, agendar a doação e atender a uma série de requisitos, como o aval da Vigilância Sanitária para qualquer pão com manteiga entregue a quem tem fome.

Quem ganha a comida também terá que estar cadastrado. Tudo isso, na prática, vai impossibilitar a distribuição de alimentos a quem precisa. Pois, vale lembrar, fome não vem com hora marcada, nem respeita burocracias.

Só o PT e o PSOL se colocaram de forma contrária ao PL na votação simbólica. O projeto passou junto com um pacotão de propostas de vereadores, que agora podem usá-los em suas campanhas pela reeleição.

Após uma repercussão muito ruim nas redes sociais, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) prometeu que vetaria a proposta. E o autor da ideia genial, o vereador Rubinho Nunes (União Brasil), anunciou que a tramitação da proposta foi "imediatamente suspensa".

Nunes, o vereador, não o prefeito, também é pai do pedido de Comissão Parlamentar de Inquérito que visa a atingir o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, e outras organizações que aliviam o sofrimento dos mais vulneráveis na região central da capital.

Em nota enviada à imprensa, ele havia dito que o objetivo era garantir um protocolo de segurança alimentar, otimizar a assistência social e melhorar a vida dos vulneráveis. Culpa uma interpretação desvirtuada sobre o projeto pelas críticas.

O PL afirma que, em caso de descumprimento, quem doar alimentos poderá ser multado em R$ 17.680. O mais irônico é que muitos dos mesmos vereadores que aprovaram o texto batem no meio se dizendo liberais e criticando a intervenção do Estado.

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A doação de alimentos por instituições religiosas, pela sociedade civil ou por cidadãos preocupados com o sofrimento do seu semelhante só ocorre devido à presença insuficiente do poder público, que deveria ser o responsável por cumprir essa tarefa. Não é uma responsabilidade desta administração apenas, mas de todas as que vieram antes dele.

São Paulo tem uma população em situação de rua que varia de 25 mil a mais de 60 mil, a depender da estimativa e da contagem. São eles os prejudicados com esse tipo de ação de caráter higienista, aporofóbica, que beneficia a especulação imobiliária.

Para além da provocação ao trabalho do padre Júlio Lancellotti e da criação de mais um factoide para animar a extrema direita nas redes sociais em ano de eleição, a Câmara mandou o seguinte recado aos paulistanos com essa aprovação do PL em primeira votação: não ajude, deixe morrer.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL