Post otimista sobre vacinas omite 2ª dose e confunde previsão com realidade
Uma publicação que tenta propagar otimismo sobre a campanha de vacinação contra a covid-19 e o futuro da pandemia no Brasil contém informações que confundem a previsão sobre entrega de doses com a aplicação delas. O post ainda leva a uma interpretação errada ao não mencionar que a grande maioria dos imunizantes precisa de duas doses para que o indivíduo fique protegido.
A publicação estava disponível no Instagram até a publicação deste texto, mas o autor fechou seu perfil na rede social e agora o post não é mais público. Reproduzimos algumas das imagens ao longo da matéria abaixo.
Intitulada como "7 Motivos para Acreditar que Tudo Isso Está Acabando", a publicação tem oito imagens, sendo uma de apresentação e outra de conclusão, deixando a pessoa que lê com apenas seis motivos sobre a previsão. O principal deles diz respeito à previsão global de imunizantes produzidos em 2021, descrita como de 10,6 bilhões, o que supera em muito a população do mundo, estimada em 7,8 bilhões.
Apesar de algumas das previsões estarem até abaixo do que já apontaram os próprios laboratórios — a AstraZeneca, por exemplo, tem 1,8 bilhões de doses previstas no post, mas já chegou a citar 3 bilhões de doses para 2021 —, o que a publicação não cita é que apenas os imunizantes da Janssen e da CanSino são de dose única. Ou seja, em vez de sobrarem doses, faltarão vacinas para imunizar toda a população.
Considerando as duas doses para a imunização e os dados mostrados pela publicação, chegamos a 5,9 bilhões de pessoas imunizadas, com quase 2 bilhões no mundo ficando sem vacinas até o final do ano.
Isso porque a Janssen tem previsão de entregar 1 bilhão de doses em 2021, e a CanSino, 200 milhões na expectativa mais otimista. Com isso, as outras 9,4 bilhões de doses imunizariam outras 4,7 bilhões de pessoas, chegando assim ao total de 5,9 bilhões de imunizados.
Doses previstas, entregues e aplicadas
Ainda que as 5,9 bilhões de pessoas vacinadas com duas doses sejam suficientes para ultrapassar 70% da população, marca apontada como necessária para ser considerada uma imunidade de rebanho, a visão otimista da publicação vai de encontro com a realidade de produção, distribuição e aplicação das vacinas.
No Brasil e no mundo, as campanhas de vacinação devem sofrer periodicamente com problemas de logística na distribuição e podem até serem paralisadas caso faltem doses, como já aconteceu em diversas cidades brasileiras nas últimas semanas.
O atual ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, que será substituído pelo cardiologista Marcelo Queiroga, chegou a revisar duas vezes a previsão de doses à disposição no Brasil para março. Dos iniciais 38 milhões, Pazuello já falou "entre 22 e 25 milhões". Mesmo assim, a previsão de 38 milhões segue no cronograma oficial da pasta, que é reproduzido pela publicação em questão.
O maior argumento dado para acreditar na possibilidade de termos 25% da população brasileira vacinada até abril é o cronograma de entrega de doses do Ministério da Saúde, que aponta essa soma para os quatro primeiros meses do ano. Em fevereiro, a estimativa era de 11,3 milhões, mas foram distribuídas apenas 5,6 milhões, menos da metade do previsto.
Depois da distribuição, ainda é preciso que as doses sejam aplicadas, algo em que o Brasil já foi reconhecido pela sua eficiência em vacinações anteriores contra a gripe. No momento, porém, a pouca oferta de doses tem sido o gargalo que mantém o país com menos de 2% da sua população vacinada com duas aplicações, de acordo com dados do consórcio de imprensa, do qual o UOL faz parte.
Brasil x Estados Unidos
Mais um argumento da publicação de difícil comparação é a realidade atual vivida por Brasil e Estados Unidos na pandemia. Mesmo acertando na afirmação de que os americanos aplicaram 110 milhões de doses em 60 dias, não é mencionado que o esforço de vacinação foi uma promessa de campanha do novo presidente Joe Biden, que assumiu em janeiro. Além disso, a grande maioria das doses já havia sido contratada em julho do ano passado, pelo ex-presidente Donald Trump.
No Brasil, o cenário é bem diferente. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi crítico ferrenho no ano passado da CoronaVac, a principal vacina aplicada no país desde o início da campanha. Em agosto, o governo federal recusou uma oferta de 70 milhões de doses do imunizante da Pfizer/BioNTech, e assinou apenas com a vacina da AstraZeneca/Oxford, que teve até agora apenas cerca de 5 milhões de doses entregues à Saúde.
O contrato para adquirir a CoronaVac só foi assinado em 7 de janeiro deste ano. Dez dias depois, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou o uso emergencial da AstraZeneca/Oxford e da CoronaVac. Depois disso, o governo aprovou apenas mais uma vacina: a da Pfizer, essa para uso definitivo, e assinou contrato nas últimas semanas com outras farmacêuticas, mas até o momento só dois fabricantes distribuem no país.
Em 15 de março, o governo anunciou a entrega de 562 milhões de doses até o final do ano. No mesmo dia, o UOL publicou que 68 milhões de doses de vacinas ainda não foram aprovadas pela Anvisa. Já outra reportagem, publicada três dias depois, mostrou impasses que atrasam o cronograma de vacinação no país.
No mesmo dia do anúncio de 562 milhões de doses, foi anunciada a troca no comando do ministério da Saúde, mas Bolsonaro anunciou que manterá a estratégia adotada até o momento.
"Não deixe de viver"
Por fim, o otimismo da publicação se resume em confiar na aceleração da vacinação, manter o distanciamento social e o uso de máscaras. Mas o momento atual do Brasil se mostra com mais preocupações, diante do 24º dia seguido de recorde na média móvel de mortes diárias, aproximando-se de 300 mil mortes causadas pela covid-19.
Nessa situação, as autoridades de saúde julgam que os cuidados individuais de sempre na pandemia não são suficientes, e por isso vários estados têm hoje apenas as atividades essenciais em funcionamento, mesmo assim com restrições. Em algumas federações e cidades, o lockdown determina que nem a indústria pode funcionar. Além disso, milhões de estudantes estão em recesso escolar. Tudo para tentar frear a propagação do vírus e evitar mais mortes.
O post fala em não deixar de "trabalhar, estudar e viver", o que não se aplica a muitas pessoas hoje no país, que precisam, além do distanciamento social, procurar também praticar o isolamento social em suas casas, muitas vezes sem a opção de trabalhar e estudar remotamente.
A recomendação fala nos próximos 60 dias, na confiança de que a vacinação reduzirá os efeitos da pandemia. Mas as novas variantes, que vêm potencializando as ondas no Brasil e na Europa, ainda não têm cobertura garantida por todas as vacinas contra a covid-19. O surgimento de novas cepas — uma realidade factível — é mais uma ameaça para a visão otimista.
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