'Crimes estão sendo cometidos', diz ex-juíza de Haia sobre Israel e Hamas

Embora as legislações internacionais classifiquem o sequestro de pessoas e bombardeios a hospitais, escolas e casas de civis como "crimes de guerra", as investigações costumam ser longas e não começam imediatamente após os ataques.

Ataques a igrejas, casas, escolas e hospitais

Ações como ataques contra escolas, hospitais, igrejas e bombardeios a casas de civis são consideradas crimes de guerra, de acordo com as Convenções de Genebra de 1949, os protocolos adicionais de 1977, o Estatuto de Roma e a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.

"Não existe hierarquia entre crimes de guerra, são todas condutas graves. Mas começam com os ataques contra a população civil que não está tomando parte das hostilidades", afirma Sylvia Steiner, única brasileira que atuou como juíza no TPI (Tribunal Penal Internacional), em Haia (Holanda). "Estão sendo cometidos crimes de guerra", complementa a ex-juíza, ao falar do conflito entre Israel e Hamas.

Sequestrar civis, usar pessoas como escudos humanos ou reféns, dificultar o acesso a alimentos e remédios também são considerados crimes de guerra. "A guerra tem regras, muitas pessoas acreditam que é um vale-tudo, mas não é", diz Manuel Furriela, professor de Direito Internacional. "Os combates têm de ocorrer entre forças militarizadas, civis não podem ser atingidos. Mais do que isso: eles devem ser protegidos. Estabelecimentos utilizados pela população civil precisam ser protegidos."

O ataque aéreo que atingiu parte de uma igreja ortodoxa em Gaza, que deixou um número incerto de mortos e feridos no local usado como abrigo para fugir da guerra, pode ser considerado como duplo crime de guerra. "É um importante monumento histórico e um lugar que estava sendo usado como refúgio", afirma Paulo Borba Casella, professor de Direito Internacional Público da Faculdade de Direito da USP.

"Serviços básicos utilizados pela população têm que ser preservados e protegidos. A interrupção infringe as regras", diz Furriela. Por isso, atos como o ataque ao Hospital Batista Al-Ahli Arab, localizado no centro da cidade de Gaza ou a uma escola mantida pela ONU no campo de refugiados de al-Maghazi, na área central de Gaza, que deixou ao menos seis mortos e dezenas de feridos, provocaram indignação e protestos em todo o mundo.

Executar bombardeios em regiões como a Faixa de Gaza, com alta densidade populacional, visando uma determinada pessoa num local são abusivos. É impossível não atingir civis. Também é abusivo exigir que um milhão de pessoas se desloquem para a parte sul do território e bombardeá-lo.
Paulo Borba Casella, professor de Direito Internacional da USP

Centenas de palestinos são mortos em uma explosão no Hospital Al-Ahli, no centro de Gaza
Centenas de palestinos são mortos em uma explosão no Hospital Al-Ahli, no centro de Gaza Imagem: STRINGER/REUTERS

Abertura de investigação

Autoridades e especialistas em Direito Internacional consultados pelo UOL acreditam que um procedimento de verificação deve ser aberto para investigar crimes de guerra no conflito entre Israel e Hamas.

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Não há prazo determinado para o início da investigação. Steiner diz que ainda é cedo para que "as imagens vistas sirvam de provas". Casella pondera que o TPI tem um "ritmo próprio" para abrir processos de investigação. "Em 17 de março de 2023 [pouco mais de um ano do início da guerra entre Rússia e Ucrânia], o TPI emitiu um mandado de prisão contra o presidente da Rússia, [Vladimir] Putin. É uma instituição independente", diz.

Apesar de Israel não ter ratificado o Estatuto de Roma, que criou o TPI, o Tribunal tem jurisdição para julgar casos que ocorram em território palestino e na Cisjordânia.

Quando o Benjamin Netanyahu [primeiro-ministro de Israel] diz que quer transformar Gaza em uma ilha deserta e, na sequência, executa ações nesse sentido há indícios de crimes de guerra que depois devem ser examinados e julgados.
Paulo Borba Casella

Assembléia dos países do Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda
Assembléia dos países do Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda Imagem: Getty Images

Como funcionam as cortes internacionais

A principal corte internacional que investiga crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídios é o Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma. Mas existem outras instâncias internacionais como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos e a Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão judicial da ONU (Organização das Nações Unidas).

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No TPI, as investigações têm início a pedido de um Estado, organizações não governamentais ou de vítimas. Neste último caso, pessoas levam provas, fotos e testemunhos ao tribunal. Outro caminho é o TPI abrir um procedimento de inspeção ou inquérito e deixar as partes envolvidas apresentarem suas defesas.

Há 17 investigações em curso no TPI envolvendo países como República Democrática do Congo, Geórgia, Miamar, Afeganistão, Ucrânia, Filipinas, Palestina, entre outros. No conflito entre Rússia e Ucrânia, o tribunal criou um grupo de inspeção para coletar depoimentos sobre as violações.

As investigações podem também integrar processos já abertos. Steiner afirma que, em 2019, a Autoridade Palestina pediu que crimes de guerra cometidos na Cisjordânia e em território palestino fossem apurados. "A investigação fica aberta até que se investigue tudo, as causas podem estar lá atrás, como se fosse um processo".

Os crimes investigados são individualizados. "Eles são definidos individualmente, com datas, condições e autoria. Eventualmente podem ser julgados conjuntamente", explica a ex-juíza. Não há uma média de tempo para que os julgamentos ocorram — depende da complexidade dos casos e do recolhimento das provas. "Em meio a um conflito é muito difícil ir aos locais para recolher as provas", diz Steiner.

Orçamento e países que não cumprem decisões

Apesar de o TPI ser uma instância com jurisdição sobre todos os países do mundo, existem Estados que não aderiram ao Tratado de Roma. "Eles entendem que não estão sujeitos ao julgamento do Tribunal", afirma Furriela.

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A principal dificuldade do TPI é "fazer com que os países cumpram as decisões" tomadas. "Ninguém quer ser condenado pelo TPI e ficar sob risco de prisão ao deixar seu país", afirma o professor. Segundo ele, são julgadas "autoridades em qualquer posição hierárquica que tenham influenciado decisões".

Os recursos vêm da contribuição dos 123 países membros. "Investigar conflitos armados é caro, ainda mais em casos em que são necessárias perícias. A qualidade das investigações depende do orçamento definido na assembleia dos Estados partes", diz Steiner. "A lógica é: quanto mais casos, maior tem de ser o orçamento."

Casas e predios destrúidos por bombardeios israelenses em Jabalia, no norte da Faixa de Gaza
Casas e predios destrúidos por bombardeios israelenses em Jabalia, no norte da Faixa de Gaza Imagem: Anas al-Shareef -- 11.out.23/Reuters

'Temos que lidar com a guerra da propaganda'

A ex-juíza destaca que a guerra entre Israel e Hamas tem sido impactada por uma disputa de narrativas que impõe obstáculos às apurações. "Temos que lidar com a guerra da propaganda de ambos os lados."

O registro das informações é importante para que se busque uma eventual responsabilização, segundo Casella. "Com mais meios e canais de comunicação é mais fácil se veicular notícias falsas, mas registrar informações podem servir como materialidade para apurações."

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Nos casos do bombardeio do hospital e da igreja em Gaza, o professor da USP afirma que mesmo que haja uma disputa de versões sobre a autoria e o objetivo dos ataques, o registro dos fatos é importante para que se possa instaurar investigações.

As mídias sociais levaram a uma abordagem do conflito armado como se fosse uma partida de futebol, mas são questões muito complexas. As discussões se tornam maniqueístas.
Sylvia Steiner, ex-juíza e única brasileira a atuar no Tribunal Penal Internacional

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Imagem: Arte/UOL

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