Sem Santos Cruz, governo Bolsonaro tende a se radicalizar, afirma analista
A demissão do general Carlos Alberto dos Santos Cruz da Secretaria de Governo fortalece o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e abre um espaço maior para radicalizações na gestão Jair Bolsonaro (PSL). A avaliação é feita por Marcos Nobre, professor de filosofia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor do livro "Imobilismo em Movimento. Da Redemocratização ao Governo Dilma".
Para o pesquisador, a decisão de Bolsonaro de demitir o general muda a correlação de forças no Palácio do Planalto e torna mais difícil o papel que militares assumiram de organizar e conter o governo.
Nobre classifica Bolsonaro como representante da extrema-direita e o considera um risco à democracia. Apesar da vitória em 2018, o presidente e a extrema-direita são minoritários na preferência do eleitorado brasileiro, argumenta Marcos Nobre. "Bolsonaro surfou uma onda que era muito maior do que ele [na eleição presidencial]".
Em sua opinião, a democracia ficará sob ameaça caso partidos de direita decidam aderir ao governo. "O único projeto que esse grupo de extrema-direita liderado pelo presidente tem é de hegemonia, se consolidar no poder e conseguir ser duradouro no poder".
Para o professor da Unicamp, Bolsonaro busca preservar seu núcleo duro de apoio e mobilização e ao mesmo tempo atrair a direita tentando convencê-la de que uma plataforma de extrema-direita é o único caminho para que ela se consolide no poder e impeça a reorganização da esquerda
De acordo com o analista, o presidente não tem tanta pressa na aprovação da reforma da Previdência. Se ela demorar alguns meses, explica o professor, o presidente chegaria a 2020 com mais condições de alavancar o desempenho de aliados nas eleições municipais, elemento imprescindível para convencer a direita a apoiá-lo nos anos seguintes.
Marcos Nobre assumiu recentemente a presidência do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), instituição criada há 50 anos por professores, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), afastados das universidades pela ditadura militar.
Confira abaixo os principais trechos de entrevista que ele concedeu ao UOL.
UOL - O sr. afirma em artigos que as instituições estão operando de forma disfuncional no Brasil. Quando e como isto começou a acontecer?
Marcos Nobre - O sinal de alerta para o sistema político foi junho de 2013, mas o sistema político não entendeu que precisava se autorreformar de maneira profunda. Enfiou a cabeça embaixo da terra e falou: "essa onda de insatisfação em algum momento vai passar".
No momento em que o candidato derrotado [Aécio Neves, no segundo da eleição presidencial de 2014] não só levantou a suspeita de fraude como entrou com uma ação com suspeita da urna eletrônica, começou um movimento incontível. Aécio Neves (PSDB) achou que aquela energia que tinha saído de junho de 2013 iria apoiá-lo. Acontece que aquela energia se dissipou por vários caminhos, e não necessariamente foi para ele, muito menos para o governo [Michel] Temer (MDB).
A Lava Jato se pôs como representante da reforma do sistema político, coisa que o Judiciário não pode fazer. Ele não foi feito para isso.
A disfunção começa aí. Você tem um candidato derrotado que não aceita a derrota, que não aceita as regras do jogo, tem uma energia social que está dispersa e que é vampirizada por uma parte do Judiciário, que promete uma coisa que não pode entregar, que é a reforma política.
O sr. também afirma que o presidente Bolsonaro depende do colapso das instituições para se manter. Por que, na sua opinião, Bolsonaro foi o candidato do colapso e não um símbolo da nova política?
Ele se elegeu por causa desse colapso. Principalmente depois da facada [sofrida durante a campanha eleitoral], ele conseguiu carrear para a candidatura dele grupos do eleitorado muito distintos. Claro que uma pessoa pode pertencer a diferentes grupos, mas você tem o lava-jatismo, o antipetismo, o conservadorismo de costumes, o pedido de lei e ordem, o pessoal que votava nulo, o pessoal que se abstinha. Muitos desses segmentos confluíram para uma mesma candidatura. Essa confluência foi única. O candidato Bolsonaro entrou exatamente na janela do tempo que era a janela do colapso institucional.
Ele surfou uma onda que era muito maior do que ele. A parcela da população brasileira de extrema-direita é muito menor do que os votos que ele recebeu.
No governo, ele vai ter de fazer a transição para a institucionalização. Ainda estamos para ver como e quando. Mas é um movimento politicamente muito difícil de fazer. Como é que você sai de candidato antiestablishment para um candidato institucionalizado?
Quais os dilemas desta situação para o país?
Existe uma situação objetiva de impasse. Porque você está numa situação em que o presidente é minoritário e luta contra o sistema. É um governo antiestablishment, que é uma coisa paradoxal. Tudo aquilo que é identificado com o sistema político está na defensiva.
Ele [Bolsonaro] fez uma aliança com setores das Forças Armadas que aceitaram fazer o papel de estabilizadores do governo. Um papel de conter esse movimento extremista por parte do Bolsonaro, tanto no sentido das ações dele como no sentido de preservar o Estado brasileiro. Essa parcela das Forças Armadas sentiu que era sua responsabilidade vertebrar esse governo.
Como o Bolsonaro pode fazer para se manter no poder? Precisa conseguir uma aliança com a direita, convencer a direita democrática de que ele é a verdadeira possibilidade de a direita se manter no poder de maneira duradoura, que ele é que tem voto.
Por isso essa tarefa do ministro Onyx Lorenzoni [da Casa Civil], que é de tentar trazer o Democratas para a aliança de governo. Tentou isso novamente com o governador Ronaldo Caiado [de Goiás] na convenção do Democratas, e não obtiveram essa adesão.
Ele [Bolsonaro] usa essa mobilização de redes [sociais] e o que ele chama de nova política para chantagear a direita e dizer: ou vocês se integram nesse projeto ou vão ficar no deserto eleitoral e institucional. Por isso o bate e assopra. Ele bate e assopra o tempo inteiro, principalmente com a figura do [presidente da Câmara] Rodrigo Maia (DEM-RJ), que responde na mesma moeda. É um bate e assopra dos dois lados.
O DEM é um partido altamente simbólico porque representa a direita brasileira. A questão toda é para onde vai a direita brasileira. O risco é que a direita democrática decida que é viável fazer coalizão com uma pessoa de extrema-direita como é o Bolsonaro. Isso é um risco muito grande para a democracia brasileira.
Como se configura esse risco para a democracia?
É como se configura na Hungria, na Polônia. Ou seja, a extrema-direita chega ao poder pela via eleitoral e uma vez no poder vai destruindo a democracia de dentro.
Bolsonaro sabe que chegou ao poder por uma janela muito especial no tempo, por uma coincidência de força, uma confluência de movimentos que não necessariamente desaguariam nele se não tivesse toda essa conjunção histórica desde 2013. Ele sabe que precisa primeiro conquistar a direita para poder fincar um governo que seja de direita mas com liderança da extrema-direita.
A partir daí a coisa fica muito mais preocupante porque solapar a democracia de dentro é o que a gente tem visto no mundo inteiro. As democracias não são solapadas de fora, não tem golpe, tanque na rua, nada disso. A democracia é corroída por dentro, quando você começa a mudar o STF (Supremo Tribunal Federal), controlar meios de comunicação etc.
Que análise o sr. faz da demissão do general Santos Cruz da Secretaria de Governo? Para onde caminha o governo?
Esse governo possui dois polos: um que chamo de mobilizador e um que chamo de organizador [representado pelos militares]. O polo mobilizador tem várias vertentes, como a olavista, embora o [escritor] Olavo de Carvalho não tenha relevância. Tem outra que é eleitoral, pensando em 2020. Essa parte da mobilização com vistas à eleição é canalizada pelo ministro [Onyx] Lorenzoni [da Casa Civil]. Antes você tinha o polo mobilizador e o polo organizador mais ou menos em pé de igualdade, e agora a balança pesou mais para o lado do polo mobilizador.
O objetivo do Lorenzoni é atrair a direita, é demonstrar que só um governo de extrema-direita pode manter a direita no poder e evitar uma volta da esquerda. Para isso, [o governo] precisa demonstrar força eleitoral nas eleições [municipais] de 2020. Para atrair a direita e para ter força eleitoral, ele precisa ter alguma base partidária que ele não tem no PSL. Ele quer atrair o Democratas.
Quem é oposição a essa adesão do DEM ao governo? Principalmente Rodrigo Maia e [o presidente do DEM e prefeito de Salvador] ACM Neto. O Santos Cruz era alguém que dava força para o Rodrigo Maia e indiretamente para o ACM Neto. Então, [a demissão de Santos Cruz] é uma vitória enorme do Lorenzoni sobre o polo organizador.
Vamos ver como esse novo ministro [o também general Luiz Eduardo Ramos] vai se comportar, mas em princípio o que consegui entender é que ele vai trabalhar afinado com o Lorenzoni. [A demissão de Santos Cruz] fortalece o Lorenzoni e, portanto, o jogo para cima do Rodrigo Maia e do ACM Neto vai ser mais pesado. É uma espécie de tentativa de comer o DEM pelas bordas. Até o momento em que Maia e ACM Neto se sintam compelidos a apoiar o governo.
Isso [também] foi preparado pela demissão dos deputados não eleitos que estavam na Casa Civil e que agora vão ser substituídos por figuras ligadas ao DEM.
A substituição do Santos Cruz, embora o próprio não soubesse, foi preparada muito tempo antes. Eles aproveitaram a "vaza jato", a divulgação das conversas do [Sergio] Moro [ministro da Justiça], para fazer essa operação. Eles abafam a grande mudança política desse governo. É a primeira vez que a gente vê a consolidação do núcleo de poder. O núcleo de poder está fortalecendo o polo mobilizador. Ou seja, o polo organizador está a reboque do polo mobilizador.
As Forças Armadas correm riscos com uma presença tão grande de militares nos primeiros escalões do governo?
Os militares têm a função de organizar e conter [o governo]. A estratégia de contenção ficou muito mais difícil. Eles não podem simplesmente sair do governo, e o projeto de radicalização que o Lorenzoni vai colocar em marcha é uma coisa deletéria para a própria organização militar.
Ficar [no governo] tem um custo muito alto. O polo organizador que achou que ia conter o Bolsonaro e que ia dirigir o governo dele agora está a reboque dele e do polo mobilizador. Mudou a correlação de forças entre os polos. O polo mobilizador agora está dando as cartas.
O núcleo de poder de todo governo se consolida depois de mais ou menos seis meses. O fato de isso [a demissão de Santos Cruz] acontecer exatamente no sexto mês é um sinal de que o ministro Lorenzoni ganhou a parada do ponto de vista interno. Isso coloca os militares numa situação muito difícil. É preciso saber como o Alto Comando [das Forças Armadas] vai reagir ao longo do tempo.
Se o projeto do Lorenzoni se aprofundar, [os militares] vão ter que encontrar uma maneira de sair honrosamente do governo ou de ganhar a luta contra o polo mobilizador. Não sei como o polo organizador vai poder reverter essa derrota.
Sem a presença do general Santos Cruz, o sr. acredita que a tendência é que haja mais espaço para radicalizações no governo?
Isso, [a tendência é que haja] um espaço maior para a radicalização.
Quais seriam as pautas prioritárias do campo da extrema-direita no Brasil?
Não creio que exista de fato um projeto muito preciso.
O único projeto que esse grupo de extrema-direita liderado pelo presidente tem é de hegemonia, se consolidar no poder e conseguir ser duradouro no poder.
Toda aquela caricatura que o Bolsonaro sempre fez da esquerda como sendo aquele grupo minoritário que quer chegar ao poder e estabelecer sua hegemonia é exatamente o projeto dele. Ele repete a caricatura que ele próprio fez do que seria a esquerda.
Não é só que ele não tem projeto, ele não pode ter projeto porque ele precisa da adesão da direita para chegar a um projeto mais determinado. Ele quer poder liderar esse processo e que haja um acordo entre a extrema-direita e a direita. Essa é a proposta que ele está fazendo. Ele está fazendo uma proposta de fazer uma coalizão. Ele está negociando um pouco duro demais, mas o objetivo é esse.
Como fica a proposta de reforma da Previdência nesse cenário que o sr. descreve?
A impressão que fica é que o governo Bolsonaro precisa ganhar tempo para chegar até a eleição de 2020 e provar para a direita que ele é eleitoralmente atrativo. Para isso, quanto mais demorar a reforma da Previdência melhor porque fica mais perto de 2020. Enquanto todo mundo fica preocupado com a reforma da Previdência, Bolsonaro vai mobilizando e preparando suas redes para a eleição [municipal] de 2020 que é quando ele quer demonstrar seu potencial eleitoral para a direita.
O único projeto que ele tem é eleitoral porque ele sabe que o projeto político que ele tem não é majoritário no eleitorado brasileiro. Então ele precisa ter mais força eleitoral para poder tentar impor esse programa, tentar obrigar a direita a aderir a essa estratégia de se manter no poder.
Justamente para atrair a direita, o governo Bolsonaro precisa dar a impressão de que o seu governo está em disputa, de que ele está aberto a uma negociação com essas forças nos termos dele, que ele chama de nova política. Evidentemente, não é nova política. É simplesmente a política do colapso.
Ele está tentando adiar as coisas enquanto puder. Na Câmara e no Senado, já perceberam que esse é o movimento dele. Por isso que começaram a perguntar qual é a agenda que vem depois da Previdência.
Se, na sua visão, o governo não tem tanta pressa para aprovar a reforma da Previdência, ter maioria no Congresso não seria importante neste momento?
Não [seria], é irrelevante. Até ajuda não ter maioria. Não diria o governo porque o Paulo Guedes [ministro da Economia] tem interesse. Quem não tem interesse é o Bolsonaro. Então, o fato de ser desorganizado no Congresso é bom para o projeto político do Bolsonaro.
Quando o Bolsonaro terceirizou o governo na economia, terceirizou de verdade no sentido de que disse ao Paulo Guedes: "é necessário fazer uma reforma da Previdência? Ótimo, problema seu, não é meu problema aprovar a reforma". O custo para ele [Bolsonaro] é muito baixo porque não é ele que quer.
O Bolsonaro tem essa característica e essa capacidade de comunicação, de dizer para a população: "olha, estou aqui de mãos atadas, estou fazendo o meu melhor, dentro desse sistema podre". Ele aparece como aquele cara que parece burro, mas não é, aquele sujeito que, dentro do sistema político, joga de maneira esperta.
Há uma movimentação antecipada pela eleição presidencial de 2022? Qual seria a causa desta movimentação?
O fato de você ter um governo minoritário e um presidente extremista antecipou muito a sucessão. O governo não é de extrema-direita, mas é muito grave que o líder do governo seja de extrema-direita.
O governador [João] Doria [PSDB, de São Paulo] está tentando correr numa faixa limítrofe entre a direita e a extrema-direita e para isso está tentando a mesma estratégia do Lorenzoni, que é atrair o DEM. Para fazer isso, Doria resolveu seguir o caminho mais radical possível. Ele atacou diretamente o [ex-governador} Geraldo Alckmin. Está querendo dizer que os tucanos fundadores, aqueles têm uma relação com as origens do PSDB, não são mais bem-vindos no partido, a menos que façam o processo de adesão à candidatura dele.
Ele está levando o PSDB muito para direita. Ele é uma espécie de cópia do Bolsonaro em termos de estratégia e lógica.
A candidatura [Luciano] Huck é uma candidatura [de] direita clássica, ou seja, vai tentar reconstruir aquilo que sobrou da direita democrática e tentar concorrer dizendo que é candidato de centro-direita contra a extrema-direita. Então é uma estratégia diferente, mas mais difícil porque você não tem um partido [com] que se possa contar.
Huck acha que pode recolher os destroços do naufrágio da direita brasileira. O Doria não tem esse mesmo objetivo. Ele acha que os destroços da direita brasileira devem ser destroços mesmo, que a eleição do Bolsonaro mostraria que o Brasil está indo para a extrema-direita e o que ele pode oferecer é uma extrema-direita com desconto.
O sr. vê a esquerda preocupada com a situação e tentando dialogar com a direita?
Uma das tarefas importantes da esquerda democrática é convencer a direita democrática de que é possível reconstruir um campo comum a partir do qual seja possível fazer em novos termos a disputa política, ou seja, [realizar] um novo pacto democrático.
É necessário que a gente consiga fazer esse diálogo, estabelecer novas regras de convivência e competição política, um novo solo a partir do qual seja possível discordar. Isso vai ter que ser construído.
Vejo iniciativas ainda incipientes. São manifestos em que estão reunidas figuras de todos os espectros políticos [ex-ministros do Meio Ambiente, da Educação e da Justiça se uniram para contestar medidas do governo]. Mas a situação é muito difícil por uma razão simples. Quem ganha a eleição ganha uma coisa que é determinar o perdedor e seu lugar. Ao vencer, o Bolsonaro determinou o lugar de todos os outros como sendo o da velha política, como sendo do sistema, do toma-lá-dá-cá, da negociata.
Essa posição é muito complicada porque quem perdeu a eleição tem que defender instituições que são indefensáveis do ponto de vista da maioria da população. É necessário defender as instituições mesmo no estado deplorável em que elas estão e simultaneamente pensar novas instituições que vão ser esse novo pacto democrático.
O sr. esperava tantas mobilizações contra e a favor do governo em apenas seis meses de governo? O que estas manifestações representam?
Isto é esperado em governos populistas que se apoiam numa parcela minoritária da população.
Bolsonaro não tem a pretensão de governar para a maioria. Ele tem a pretensão de governar para o bastião que permanece fiel a ele. Quando começa de fato o governo, ele se reduz à base que o apoia.
Isso tem dois efeitos. Essa base não é maioria, mas é mais aguerrida e mobilizada. E de outro lado a rejeição é enorme, um grupo maior, mas mais desorganizado.
As manifestações significam essa insatisfação da maioria da população com o governo e o presidente. Por outro lado, a gente tem que se perguntar qual é o saldo organizativo das manifestações. Ou seja, como é que essa insatisfação, esse descontentamento e essa rejeição ao governo Bolsonaro se transformam em algo positivo, em organização de fato. Porque do outro lado tem organização e tem governo.
Com as revelações das conversas entre Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato, algo pode mudar na relação entre quem defende a liberdade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os protestos contra o governo Bolsonaro?
Tem muitos elementos aí. Um possível efeito dessas revelações feitas pelo The Intercept é uma redução da base de apoio da Lava Jato ao antipetismo. É muito possível que isso aconteça.
Agora o fato de reduzir a base não significa que fica menos importante. Pode ter um efeito inesperado de aumentar o aguerrimento, e inclusive de voltar um elemento que parecia afastado, que era o "outro do Bolsonaro". Ou seja, o Bolsonaro de novo ter seu grande inimigo, poder de novo dizer: "está vendo? É real a ameaça de que o Lula e o PT voltem". Que é uma coisa que tinha saído do horizonte.
A questão do "Lula Livre" é a questão da sobrevivência do PT. O PT estabeleceu para si uma estratégia de manter todos os seus escudos e todas a sua fortaleza montada para se defender. A coisa de reforçar internamente o partido, a identidade do partido. Não é uma estratégia que te permita crescer, mas é uma estratégia.
Do ponto de vista da defesa da democracia brasileira, as conversas têm que ser muito mais amplas. Espero que todas as forças democráticas, não só o PT, saibam mesclar duas coisas. O fato de estarem sob ataque não impede que você estabeleça pontes e conversas com outras forças ao mesmo tempo. O clima é de muita desconfiança e muito ceticismo, mas o momento é grave demais para vacilar.
Como fica a situação do ministro Moro depois da divulgação das conversas?
Reforça a ideia de que ou Moro é candidato a presidente ou não é candidato a nada. Ele está acuado. Vai perder uma parte da base de apoio popular que tinha. A declaração do Bolsonaro sobre o evangélico no STF [no fim de maio, durante encontro na Assembleia de Deus, em Goiânia, o presidente questionou se não estava na hora de o Supremo Tribunal Federal ter um ministro assumidamente evangélico] é já uma sinalização de "[vaga no] STF, não". E foi antes disso.
A candidatura presidencial [de Moro] dependeria de um desastre de popularidade do Bolsonaro no final do mandato. Então, ele [Moro] está amarrado. Não pode sair do governo, não pode ir para o STF, a candidatura presidencial seria em condições completamente adversas.
Surgiu algo realmente novo na política entre o ano passado e este, com o início dos mandatos? O sr. viu algo que valha menção?
Valer menção não necessariamente é positivo. Os destaques dessa nova legislatura, especialmente na Câmara, foram os lives [transmissões ao vivo feitas pelos deputados com seus celulares] e essa ideia de que seria possível fazer consultas para votações específicas.
Isso nitidamente é uma coisa deletéria porque você está abrindo mão do debate com as outras forças políticas. Você está querendo dizer que existe uma relação com o eleitorado que não passa pela conversa com os outros parlamentares. Ou seja, [está querendo dizer] que você não pode ser convencido por argumentos e que não pode convencer seu eleitorado de que essa é a melhor posição. Porque também é uma função do representante dizer: "eu tinha uma posição assim, mas fui convencido da posição contrária e quero convencer vocês disso também porque os dados que me deram são esses daqui".
Tem toda uma função da representação que não é simplesmente uma coisa instantânea, de paredão de "BBB (Big Brother Brasil)", que é não só de discutir com o seu eleitorado, mas discutir também com os seus pares, que são outros representantes [da população].
O sr. assumiu a presidência da Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Qual o papel do Cebrap no contexto atual?
Agora falando como presidente. O Cebrap guarda uma memória de 50 anos e essa memória começa pelo fato de ter sido criado durante a ditadura militar como um centro de pesquisa pensado num contexto em que fazer pesquisa e entender o país fazia parte de resistir ao autoritarismo. A ciência e o conhecimento sempre vão ser contra o autoritarismo.
O Cebrap guarda essa memória e essa prática, que hoje são mais necessárias do que nunca, quando justamente a complexidade do mundo e a complexidade da compreensão do mundo, do conhecimento e da ciência estão em risco porque estão sendo desvalorizadas.
Continuamos com os mesmos ideais, com as mesmas práticas, a mesma busca do conhecimento, com a mesma paixão pela pesquisa.
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