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À CPI, Nise contraria Mandetta e Anvisa e nega 'gabinete paralelo'

Hanrrikson de Andrade, Rayanne Albuquerque e Luciana Amaral*

Do UOL, em Brasília e em São Paulo

01/06/2021 04h00Atualizada em 01/06/2021 20h32

Em versão diferente da apresentada pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e pelo presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Antonio Barra Torres, a médica Nise Yamaguchi negou hoje, em depoimento à CPI da Covid, ter existido a ideia de se mudar a bula da cloroquina.

A ideia da mudança na bula para que o medicamento fosse previsto no tratamento contra a covid-19 foi discutida em reunião no Palácio do Planalto, segundo Mandetta e Barra Torres em seus depoimentos à CPI.

Inclusive, havia uma minuta de decreto presidencial para a medida no encontro no Planalto, relataram. Barra Torres disse que Nise estava na reunião e parecia estar "mobilizada" com a iniciativa.

Nise confirmou hoje que estava presente na reunião. Mas contradisse Mandetta e Barra Torres ao dizer não ter havido "decreto de bula" nem ter defendido a medida no encontro.

"Não existiu ideia de mudança de bula por minuta e nem por decreto", disse.

Médica nega fazer parte de 'gabinete paralelo'

Nise negou ter feito parte de um "gabinete paralelo" de assessoramento ao governo federal durante a pandemia e afirmou que nunca teve encontro privado com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Eu desconheço um gabinete paralelo e muito menos que eu o integre. Sou colaboradora eventual e participo com os ministros de saúde como médica, cientista, chamada para opinar em reuniões técnicas, governamentais, específicas com o ministério da saúde. Faço questão de trabalhar com questões regulamentares da Anvisa e com todos."
Nise Yamaguchi

Em outro momento, Nise explicou que parte do seu trabalho teria se concentrado em orientações referentes ao protocolo de uso da cloroquina/hidroxicloroquina.

"Eu conversei com os técnicos sobre dosagens da cloroquina, que não poderiam ser muito altas, porque havia saído recentemente um artigo com as doses tóxicas utilizadas num estudo de Manaus. Eu tomei o cuidado, então, de esclarecer que as doses deveriam ser mais baixas", detalhou ela, ao explicar detalhadamente o seu trabalho junto ao governo.

A relação [entre o Ministério da Saúde e especialistas] é bastante técnica e bastante amistosa há muitos anos com todos os setores. Isso, de forma alguma, caracteriza que eu estaria agindo fora do meu papel de consultora eventual do ministério ou do paciente com câncer ou paciente com covid dentro do Brasil. E, aqui, tanto na Câmara quanto no Senado, sempre participei com essa função"
Nise Yamaguchi

As afirmações foram contestadas por parlamentares da oposição e críticos ao governo Bolsonaro. Na visão do relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), a "existência de um aconselhamento paralelo" já estaria "demonstrada" pelo conjunto de fatos narrados nos depoimentos obtidos pela comissão.

Calheiros citou a oitiva com o diretor da Anvisa, que relatou ter participado de reunião no Palácio do Planalto junto a Nise, ao ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e outros. Segundo o depoimento de Barra Torres, foi quando Nise teria defendido incluir a covid-19 na lista de doenças que constam na bula da cloroquina/hidroxicloroquina.

Médica nega sugestão para mudar bula e cita 'perseguição'

No depoimento à CPI, Barra Torres afirmou que Nise parecia "mobilizada" para que houvesse uma mudança na bula dos medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento da covid-19 até o momento. A alteração foi rechaçada na ocasião, afirmou ele.

Indagada a respeito dos fatos narrados por Barra Torres, Nise disse que houve uma interpretação equivocada dos fatos e que nunca partiu dela uma indicação nesse sentido.

Não fiz nenhuma minuta, inclusive não conhecia esse papel. Essa é a reunião a que ele se refere, no dia 6 de abril de 2020, que ocorreu no Planalto com a presença do almirante Barra [Torres], do ex-ministro [Luiz Henrique] Mandetta."
Nise Yamaguchi

A ideia, de acordo com o depoimento da médica, sempre foi orientar o protocolo da prescrição desses recursos farmacológicos, e não impor, via decreto presidencial, a adoção da cloroquina e da hidroxicloroquina.

Nise defendeu ponto de vista favorável ao uso de medicamentos como cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid-19, ainda que a ciência mostre que tais substâncias não são eficazes para a doença.

Hoje, Nise declarou que o atraso do uso de medicamentos do "kit covid" ajudou no aumento de mortes pela doença.

Considero que o atraso que existe no início do tratamento [precoce] é o que tem determinado tantos mortos e tantas questões nesse momento. Não só isso, não é, como nesse momento a gente tem também um problema de diagnóstico, nós temos problemas com relação a toda essa questão."
Nise Yamaguchi

Ela ainda disse que houve perseguição política a quem queria promover o tratamento precoce.

Considero que houve uma conspiração política sim. Não houve... Houve múltiplas ações contra o tratamento precoce no Brasil. Várias procuradorias entraram com ações contra prefeituras que queriam fazer o tratamento precoce, e nós entendemos que isso... Houve a perseguição até de médicos que estavam prescrevendo os medicamentos, excluindo a autonomia do médico ou a soberania do médico..."
Nise Yamaguchi

Em determinado momento da CPI, o debate sobre cloroquina rendeu uma analogia com Viagra — remédio para combater a impotência sexual —e "chá de chocalho".

Conversa de Whatsapp

Uma conversa de Nise ocorrida pelo aplicativo Whatsapp foi solicitada pelo vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), após dúvida em relação a quando ela soube de uma minuta que, ao ver dos senadores, poderia ser convertida em decreto para a alteração. Nise concordou em entregar as mensagens.

O motivo foi um documento registrado no 16º Tabelião de Notas de São Paulo entregue pela própria Nise à CPI em que registra uma troca de mensagens pelo aplicativo com o anestesista e tenente da Marinha Luciano Dias Azevedo.

Ao observar problemas na elaboração do texto, Nise alertou o integrante da Marinha que o documento "exporia muito o presidente", mas não questionou as intenções do governo na distribuição dos medicamentos às unidades de saúde do país.

Senadores independentes e de oposição querem se certificar sobre quando Nise recebeu o documento que tratava sobre a distribuição de cloroquina pelo governo federal, e o que mais foi discutido por meio das mensagens a serem entregues à comissão.

Presidente da CPI se irrita com Nise

O depoimento da especialista, que compareceu à CPI na condição de convidada, provocou bate-boca entre os membros da comissão. O presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), se irritou com a depoente depois de declarações sobre a imunização em curso no país.

Para Aziz, Nise teria argumentado em favor de uma aleatoriedade do processo de vacinação — o que ele considera ser inaceitável.

"Com essa voz calma, ela é convincente. Quem fala baixo de uma forma bem calma, passa mais credibilidade. Na realidade, para quem está nos vendo, peço que desconsidere o que ela fala sobre a vacina. Ela não está certa. Eu não sou médico, mas desde sempre a gente sabe que vacina sempre preveniu."

Em outro momento, o presidente fez eco a outros senadores que pediam à médica a apresentação de estudos que embasassem seus posicionamentos. A médica, de posse de um calhamaço de papéis, citou repetidas vezes um documento do Henry Ford Health System, descontinuado após não comprovar a eficácia do medicamento no tratamento da doença.

Encontros com Bolsonaro e eventual ministra

Indagada sobre a atuação junto ao governo, a médica declarou que "nunca teve encontros privados" com Bolsonaro. A declaração foi contestada por Renan Calheiros e outros parlamentares.

Posteriormente, ela disse que esteve com o chefe do Executivo federal em algumas oportunidades durante a pandemia, desde março do ano passado. Porém, isso teria ocorrido sempre na companhia de terceiros, de acordo com a depoente.

Nise chegou a ser cotada para assumir o Ministério da Saúde no ano passado após a saída de Mandetta.

Em entrevista ao UOL em maio de 2020, a médica disse que aceitaria o cargo: "Não é simples, mas eu aceitaria sim [assumir o ministério], porque não acho que depende da minha pessoa. É o chamado de um povo que está sofrendo por direcionamentos errados", afirmou naquela ocasião.

Hoje, porém, Nise disse ter deixado claro a Bolsonaro que não deixaria sua clínica para assumir a pasta. O cargo acabou sendo assumido pelo oncologista Nelson Teich.

Talvez eu não tenha sido convidada para ser ministra porque, no primeiro momento em que cheguei para a reunião com o presidente, deixei bem claro que tenho uma clínica muito extensa. Tenho mais de 15 mil pacientes que dependem de mim."
Nise Yamaguchi

A médica se tornou figura pública depois de colaborar com o Palácio do Planalto em estudos e movimentos técnicos relacionados ao possível protocolo do uso desses medicamentos no tratamento do coronavírus.

A médica foi fonte de informações dentro do que tem sido chamado na Comissão Parlamentar de Inquérito de "assessoramento paralelo" do governo Bolsonaro na condução da crise sanitária, que já matou mais de 460 mil pessoas no país.

O tema é um dos principais pontos de interesse da CPI, que apura se o governo federal errou no enfrentamento da pandemia e se houve irregularidades no uso de recursos da União repassados a estados e municípios.

Para os parlamentares da oposição, a existência do "assessoramento paralelo" e as ações desse grupo podem atribuir ao governo Bolsonaro responsabilidades pelo agravamento da crise sanitária. Já os aliados de Bolsonaro defendem que não há fatos que denotem crimes ou irregularidades.

Nise Yamaguchi disse hoje ter se encontrado com o empresário Carlos Wizard em reuniões de um "conselho científico independente" e ter se reunido com Arthur Weintraub. Segundo afirmou a médica, Arthur e ela se reuniram em uma reunião da Presidência da República e participaram de outras cerimônias que discutiram a prescrição de cloroquina por médicos.

Tanto Wizard quanto Arthur Weintraub irão prestar depoimentos como testemunha na CPI.

Nise diz se sentir 'agredida' e é sabatinada

Convidada a depor, a médica ainda passou por uma "prova" de conhecimentos científicos ao ser interrogada pelo senador Otto Alencar (PSD-BA), que também é médico. Insatisfeito com as respostas, o senador interrompeu Nise diversas vezes e chegou a classificá-la como "médica audiovisual", em uma tentativa de expor, em tom elevado, desconhecimento da médica sobre temas ligados à pandemia.

Eu tenho que colocar meu repúdio à situação que estou colocada ali, em um gabinete de exceção. Estou me sentindo aqui bastante agredida neste sentido porque eu estou como colaboradora eventual de várias ações de uma relação direta com a situação clinica dos nossos pacientes e eu gostaria de ter, portanto, senador, a necessária avaliação dessa posição."
Nise Yamaguchi

De acordo com o jornal Folha de S.Paulo, uma assessora da médica foi expulsa da sala onde ocorre a sessão após criticar a fala do senador. A sessão foi interrompida após o episódio. Ao ser retomada, Nise falou se sentir agredida, como relatado.

À determinada altura da CPI, Nise disse estar "aqui sendo colocada em xeque com relação às minhas condutas médicas" e "sendo questionada".

* Colaborou Ana Carla Bermúdez

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.